Era uma vez um urso eslavo à solta que era muito guloso e gostava muito de comer. Cada vez se aventurava mais a deglutir comida indigesta. Ficava adoentado por uns tempos mas depois o mal-estar passava-lhe. Um dia, quando andava à caça, teve mais olhos que barriga. Pensou que comeria aquela presa duma penada. Abocanhou e engoliu uma presa demasiado grande e o animal ficou-lhe atravessado na garganta.
Durante bastante tempo ainda se debateu – momentos que lhe parecerem meses ou anos – e, no final, acabou por sufocar e cair redondo no chão da floresta, morto. Mas, antes, o animal começou a regurgitar pedaços da presa engolida até ao estertor final.
Já se percebeu que falo de Vladimir Putin, o urso eslavo que tantos temiam e afinal não passa dum ursídeo muito limitado, e da invasão da Ucrânia. O último pedaço regurgitado foi Kherson, a terceira grande derrota desta estúpida agressão unilateral.
A memória mal resolvida é uma coisa tramada. O absolutismo czarista e depois a ditadura soviética que lhe sucedeu criaram nas elites russas a ideia da grande mãe russa e o vírus do imperialismo. Tal vício de pensamento juntamente com o facto de a população nunca ter tido a oportunidade de se habituar à vida em democracia plena, com base em instituições sólidas, assim como a extensão imensa do território, contribuíram para a emergência de lideranças políticas fortes, pouco transparentes e autocráticas.
O Gorbatchev da perestroika (reestruturação) e da glasnost (transparência) acabou por se tornar numa espécie de corpo estranho numa cultura onde a arquitectura política era irreformável sob pena de se desmoronar, como veio a suceder, e onde a natureza do próprio regime comunista não admitia a transparência dos procedimentos. Daí a censura, a repressão, a polícia política e a inexistência das liberdades individuais e colectivas.
As populações acabaram por se adaptar e sujeitar às barbaridades estalinistas que até reprimiram a fé religiosa, já que a nomenklatura não admitia repartir o poder sequer com Deus, mas os russos nunca perderam a sua devoção, o que se veio a revelar por demais evidente logo que houve abertura para a prática religiosa. Em visita ao complexo ortodoxo que integra o Mosteiro da Trindade, em honra de São Sérgio que foi declarado padroeiro da Rússia em 1422, situado na cidade de Sergiev Posad, a setenta quilómetros de Moscovo, em 2007, pude testemunhar como a religião está inscrita na alma do povo russo, mesmo nas gerações mais novas. Esta espécie de Vaticano da Igreja Oriental que inclui vários outros mosteiros, abriga hoje mais que 300 monges, a maioria deles jovens e é constantemente visitado, não apenas por turistas estrangeiros mas sobretudo pelas populações locais.
Se os russos não aspiram fortemente pela democracia é porque, ao contrário da religião, nunca a viveram anteriormente. O que não significa que não a desejem, em especial as novas gerações que são mais informadas sobre o que se passa no mundo. Já os mais idosos e infoexcluídos permanecem condicionados pela falta de liberdade de imprensa, embalados pela propaganda oficial que lhes vende o paraíso na terra, à semelhança da tradição comunista, de que a narrativa propagandística norte-coreana representará hoje talvez a mais eloquente demonstração.
Voltando à fábula. O urso eslavo começou a sair da floresta para caçar as suas presas, cada vez mais e maiores, como a Ossétia do Sul (2008), a Crimeia (2014), e Lugansk, Donetsk, Zaporizhia e Kherson (2022). Se as primeiras não lhe causaram grandes problemas digestivos já a Crimeia custou mais a engolir. Mas deglutir ao mesmo tempo as quatro regiões orientais da Ucrânia acabou por se revelar demasiado, mesmo para o estômago de um mamífero carnívoro.
Neste momento o animal encontra-se muito doente, a regurgitar partes das últimas presas ingeridas, uma a uma. Doente e envergonhado por que, sendo conhecido por muitos como o grande e invencível urso eslavo, afinal começa a revelar-se como um simples urso à beira de esticar o pernil, embora revele espasmos perigosos no estertor final. Mas quem o mandou ser tão guloso?
Afinal, talvez Esopo soubesse explicar melhor esta fábula.
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