Do ponto de vista teológico a Igreja é normalmente considerada a “esposa de Cristo”, mas Lutero (1483-1546) chamou-lhe a certa altura a “viúva de Cristo”, na sua obra “Explicações do Debate sobre o Valor das Indulgências”, publicado em 1508. Só que a designação chocante proposta pelo reformador não supõe necessariamente a morte de Cristo, mas sim que a Igreja na Baixa Idade Média tinha perdido o Salvador de vista estando na realidade separada dele.
Ora, esta separação não acontece num momento. Trata-se dum processo que se estende por anos, décadas ou mesmo mais de um século. Cristo não é mandado embora à força mas antes convidado a sair aos poucos, através de desvios progressivos na doutrina e na praxis, através de inovações e doutrinas de homens nas quais Ele não se reconhece.
Foi o que sucedeu na Igreja Medieval, que chegou a um ponto em que Cristo já não tinha lugar dentro da Igreja, tantas foram as misturas, desvios, e atalhos, numa palavra, apostasia, que vieram a transformar a “noiva” em “viúva”. E poucos são os que dão normalmente por esse desvirtuamento crescente, desde os fiéis até à liderança.
Daí a inevitabilidade da Reforma protestante mas também da Contra-Reforma ou reforma católica. Afinal todos reconheceram (tanto os que saíram como os que ficaram) que a Igreja precisava de mudanças profundas, e para os que ficaram, a eleição dum novo papa possibilitou as mudanças.
Mas o que sucedeu então com a noiva para que ficasse viúva?
Antes de mais sucumbiu à tentação de lutar pelo poder pensando nos benefícios que este lhe traria. Hermes Fernandes diz que a Igreja contemporânea no Brasil usou o poder para “eleger uma bancada que defendesse os seus interesses no parlamento. E mais: usou-o para regatear com políticos, oferecendo apoio em troca de poder, perdão de dívidas previdenciárias, concessões de rádio e TV, etc. Ela foi ainda mais longe. Não apenas transformou pedras em pães (alusão à tentação de Cristo no deserto), mas também transformou pão em pedra. A mensagem de amor, centro do evangelho pregado por Jesus, foi substituída por discurso de ódio. O que deveria alimentar multidões famintas, transformou-se em intolerância contra minorias.”
Especialistas brasileiros em ciência política referem que nos últimos tempos tem vindo a surgir um fenómeno novo e interessante nas igrejas evangélicas. Os pastores bolsonaristas que têm politizado os serviços religiosos, começaram a provocar o afastamento dos fiéis divergentes. Os jovens em especial começaram a rebelar-se contra a venda do apoio das comunidades de fé que esses pastores promovem abusivamente, uma vez que o voto é livre. Até porque muitas vezes há interesses próprios, de natureza económica e fiscal dessas lideranças religiosas.
Assim, a disputa pelo voto cristão por parte da extrema-direita provocou divisões nas famílias e nas igrejas. O site 247 afirma: “Enquanto as cúpulas das denominações abraçam o bolsonarismo e tentam influenciar o voto dos fiéis, evangélicos jovens e de baixa renda rompem com grandes congregações e declaram apoio ao petista. Jovens, mulheres e eleitores de periferia, onde Lula se sai melhor, lideram a mudança. Há ainda casos de pessoas que, cansadas do tom político de alguns eventos, se afastam dos cultos”.
A verdade é que alguns desses líderes mais mediáticos foram rápidos a perceber a derrota eleitoral do presidente cessante e a iniciar uma mudança imediata de posicionamento político de modo a virem a aproximar-se do presidente eleito. O que fica cada vez mais claro é que a agenda moral e religiosa que os levou a jogar as fichas todas na reeleição de Bolsonaro, tantas vezes insultando de forma soez Lula da Silva, não passa duma cortina de fumo. O que eles querem mesmo é estar junto do poder seja ele qual for, como aliás é comprovado pela história das últimas décadas.
O contraste com Jesus de Nazaré é brutal. Ele nunca procurou chegar-se ao poder do Templo de Jerusalém, à classe sacerdotal judaica nem às seitas político-religiosas como os saduceus ou os fariseus. Foi sempre um homem do povo. Andava entre os simples, pobres, doentes e necessitados.
E parece que apenas falou de política (no sentido estrito do termo) quando questionado, aproveitando para traçar uma distinção clara entre o religioso e o secular, séculos antes da emergência da modernidade e da ideia do estado laico: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lucas 20:25).
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