Sucedem-se os casos de suspeitas de uso indevido de vacinas, por violação do que são as indicações de prioridade definidas no plano nacional de vacinação. Depois dos autarcas de Reguengos de Monsaraz, Arcos de Valdevez e Seixal, a vacinação de funcionários do INEM e de pessoal de estabelecimentos comerciais contíguos à delegação Norte (funcionários uma pastelaria e um ex-funcionário de uma casa de francesinhas) tem levantado polémica.
Além de uma prática irregular ou de um simples “uso indevido”, como lhe chamou o coordenador do Plano Nacional de Vacinação para a Covid-19, Francisco Ramos, em causa podem estar, segundo os especialistas em direito ouvidos pela VISÃO, vários crimes. Mas tudo depende do grau de discricionariedade com que a entidade ou o funcionário receberam as instruções para a aplicação das doses da vacina, explica António Ventinhas, Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. “O plano define ou não exatamente quem é que dentro da instituição deve ser inoculado? E exatamente o que fazer com as sobras, caso existam? Quando foram entregues às instituições, foi feita uma referência genérica aos funcionários ou algo mais específico quanto ao tipo de funções que exercem? Tudo isto tem de ser avaliado”, continua.
Consoante os factos e o nível de discricionariedade em causa podemos estar perante crimes distintos. Pode estar em causa um crime de peculato por parte de quem vacina ou de quem recebe a inoculação. Segundo o Código Penal, “o funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa (…) que lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão”, que, no caso de bens de valor diminuto como parece ser este o caso, podem ir até 3 anos ou apenas pena de multa.
Se porventura o plano for menos específico, pode ainda assim estar em causa um crime de abuso de poder, previsto e punido no artigo 382º do Código Penal também com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. Neste caso, a jurisprudência entende que o mau uso dos poderes não resulta de um mero erro ou mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica de conceder um benefício ilegítimo.
Porém, os contornos podem ser pouco claros. “Há situações dúbias. Algumas situações pode, de facto, estar ainda dentro de uma margem de discricionariedade dos funcionários”, entende António Ventinhas. “É interessante notar que indevido não é propriamente o bem em causa, porque todos temos direito à vacina, mas o tempo, ou seja, a antecipação perante o plano definido”.
Perante o que veio a público e o alarme social, há margem para abertura de inquérito? António Ventinhas não tem dúvidas que sim. “Deve-se abrir inquérito, averiguar o que está em causa e depois decidir avançar ou não com um processo”, afirma.
A Procuradoria Geral da República, contactada pela VISÃO, ainda não esclareceu se já procedeu à abertura de inquéritos criminais.
Quem já ordenou a abertura de inquéritos internos foi o Ministério da Saúde. O secretário de Estado da Saúde pediu à Inspeção-Geral de Saúde que investigue o caso das suspeitas de irregularidades relativas ao processo de vacinação no INEM, que inoculou profissionais não prioritários e até funcionários de uma pastelaria contígua a uma delegação. Segundo o Ministério da Saúde, além da investigação deste caso, foi também ordenada uma inspeção mais abrangente ao nível nacional para verificar o cumprimento das normas e constantes do plano de vacinação.
O Ministério da Saúde já esclareceu que não tem meios para fiscalizar os destinatários das vacinas. “O preenchimento dos critérios para vacinação dos seus profissionais e/ou utentes é uma responsabilidade de cada instituição” a quem as doses são entregues.