Qual é o realizador, qual é, que em tempos de pandemia, consegue pôr dois filmes simultaneamente em cartaz? A resposta, claro, é Kenneth Branagh, o irlandês que cresceu em Inglaterra, especializado em Shakespeare (como ator, encenador e realizador), mas que agora navega em outras águas. Em sala está Morte no Nilo, adaptação do policial de Agatha Christie, e hoje estreia Belfast, uma viagem à sua infância na turbulenta Irlanda do Norte dos anos 60.
O primeiro foi arrasado pela crítica, porém tem sido um êxito de bilheteira. Do segundo também se espera uma boa carreira pelos cinemas, e Belfast é até um dos favoritos aos Oscars na noite de 27 de março (só nomeações são sete, incluindo nas categorias principais).
Os filmes coincidem nas salas de cinema, mas não nos anos de finalização: Belfast data de 2021, já Morte no Nilo é de 2022. E se esta foi a segunda vez que Branagh adaptou Agatha Christie ao cinema – já o havia feito no filme anterior, de 2017, Crime no Expresso Oriente –, diga-se que ele nunca tinha feito um filme tão pessoal e biográfico como Belfast.
Com fotografia a preto-e-branco, preocupações estéticas e de enquadramento claras, Belfast almeja, mais do que qualquer outro filme do irlandês, ser apreciado como um objeto artístico. Mas, ao mesmo tempo, o realizador não resiste a um estilo algo didático, apostando na clareza do discurso, não deixando nada por explicar e, por vezes, com imagens e deixas algo primárias. Não obstante, é esse filme embrulhado numa onda de nostalgia que contagia emocionalmente o espectador.
Memórias em estado puro
O contexto é o da própria infância do realizador. Kenneth Branagh nasceu em 1960, cresceu no seio de uma família protestante, numa Irlanda do Norte em conflito aberto, uma luta religiosa e política que se arrastou durante décadas. Belfast insiste, na verdade, num espírito tolerante e ecuménico, mostrando protestantes e católicos a conviver lado a lado, respeitando-se e protegendo-se. Na rua mista do filme, são os próprios protestantes que se organizam em turnos de vigia para proteger o bairro. Porém, a escalada de conflito torna-se inevitável e o segregacionismo acaba por acontecer.
O que se passou nesta Irlanda do Norte dos anos 60 repetiu-se, vezes sem conta, ao longo da História. Sempre houve sociedades que souberam conviver em ampla tolerância religiosa até se afirmarem ódios fraturantes, normalmente por motivos externos. Essa tolerância existia, por exemplo, em Sarajevo, em Trípoli, em Cabul ou na Lisboa anterior à reconquista cristã.
Em Belfast, encontramos uma vivência de rua. Uma cidade que funciona como uma pequena aldeia, em que todos se ajudam; há um bairro inteiro a tomar conta dos seus filhos. Este é um filme feito de personagens de uma ternura irresistível, às vezes rude, como a dos avós e a dos tios, que talvez Branagh tenha resgatado dos filmes de John Ford.
O contexto é a classe operária. São todos pobres, cheios de dívidas ao fisco. Buddy, alter-ego de Kenneth, é interpretado por Jude Hill, um papel belíssimo, com a candura e as emoções no sítio certo. Prevalece uma certa inocência. Essa inocência é também a do olhar de Kenneth. Só podemos olhar para Belfast como um resgate de uma memória efabulada de criança. O preto-e-branco não é sujo nem duro; é onírico. Apesar dos conflitos de rua, das bombas, das explosões, tudo parece um conto infantil. Branagh não consegue evitar uma visão amorosa da sua cidade natal, a qual dá nome ao filme. Tudo é assim construído, da caça aos dragões, às frases lapidares do avô, passando pelo baile em que o pai e a mãe dançam, tão belos que até fazem parar a pista.
No meio disto também há vários lapsos, mas nunca terá sido pretensão de Branagh fazer um retrato real da História. O autocarro para o aeroporto nunca pararia numa rua interior de Belfast; uma família da classe operária, sem casa de banho no interior do lar, dificilmente teria telefone; e, no tempo do filme, as escolas já eram separadas, pelo que Buddy não poderia ter uma colega católica na mesma turma. Branagh dá prioridade ao útil sobre o real, também para fazer prevalecer o estado de espírito puro das memórias.
A verdade, sabemos nós qual é. Aqueles conflitos que ali começaram, em meados dos anos 60, só tiveram termo com o Acordo da Sexta-Feira Santa, em 10 de abril de 1998. Até lá, muito sangue correu nas ruas de Belfast e por toda a Inglaterra. Nunca mais nada ficou verdadeiramente na mesma, mas, no início do filme, Branagh faz questão de mostrar o esplendor da capital de Ulster, com os seus mais emblemáticos monumentos. Quanto a Branagh… Tal como muitas outras famílias, protestantes e católicas, migrou para Inglaterra, cursou teatro, tornou-se um dos mais reconhecidos intérpretes e encenadores de Shakespeare, até se virar para o cinema. Já foi nomeado para oito Oscars, sem ganhar nenhum, e espera-se que Belfast quebre o enguiço. Apesar de viver em Inglaterra, confessa-se irlandês no coração. De resto, é como se diz no filme: se os irlandeses não emigrassem, não haveria pubs no mundo.
Veja o trailer
Belfast > De Kenneth Branagh, com Caitriona Balfe, Judi Dench, Jamie Dorman, Ciáran Hinds, Jude Hill > 98 minutos