É no teatro que se percebe verdadeiramente o quão superlativa Isabelle Huppert consegue ser. O solo Mary Said What She Said, com direção de Robert Wilson, espetáculo de abertura do Festival de Teatro de Almada em 2019, exigia-lhe uma concentração sobre-humana para interpretar a rainha Maria da Escócia.
Em O Cerejal, encenado por Tiago Rodrigues, ex-diretor do Teatro Nacional D. Maria II – agora de regresso à casa como artista convidado –, a atriz francesa ofusca quem se encontra em palco com ela. Os recursos técnicos de Huppert já os conhecemos do cinema, em que consegue passar de uma emoção para o seu contrário num piscar de olhos. Conhecíamos-lhe essa capacidade sempre na incorporação duma personagem arguta, deveras inteligente, intricada e complexa. Aqui, e isso é que é novo, vemos uma Huppert a interpretar uma personagem não necessariamente arguta, não necessariamente inteligente, não necessariamente intricada.
Ela é Liubov, a latifundiária que Tchékhov faz regressar com o irmão à grande propriedade uma última vez, e que nem por isso deixa de se sentir despreocupada, leve e de bem com o sabor dos tempos de mudança.
“A vertigem da mudança constante que vivemos hoje já estava anunciada nesta peça do Tchékhov, escrita há 120 anos, em que as personagens se sentem ultrapassadas, pela História, pela tecnologia… Fala-se muito no comboio, de como o comboio veio encurtar as distâncias”, diz Tiago Rodrigues. “Mais do que uma dimensão de impotência perante a mudança, acho que há uma dimensão de lucidez de Tchékhov. É um autor que olha sempre com um olhar clínico, capaz de dissecar a natureza humana, mas também – nesse gesto que poderia ser demasiado frio, cínico – capaz de encontrar ternura, recuperar confiança na Humanidade.” Em palco, a música é tocada ao vivo por Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves, dos Clã.
O Cerejal > Teatro Nacional D. Maria II > Pç. D. Pedro IV, Lisboa > T 21 325 0800 > até 19 dez, qua-sáb 19h, dom 16h > €9-€16