Aquilo que somos e aquilo que podemos ser. No fundo, é sobre este reduto que trata Sonho, clássico de Strindberg, em que a filha de um deus é enviada à Terra para perscrutar o quotidiano dos humanos. “Ser um ser humano é isto/ Saudades daquilo a que não demos valor/ Remorsos do que não fizemos…/ Vontade de partir, e de ficar…/ Rompe-se o coração em dois,/ E o sentido é rasgado/ Pela contradição, a indecisão, a desarmonia,/ Como se o rasgassem cavalos…”, diz, no final, a jovem filha de Indra, de partida do mundo dos mortais.
Esta é a peça com que António Pires, do Teatro do Bairro, regressa, para a temporada de verão, às ruínas do Carmo. “O dispositivo do sonho permite ter uma grande liberdade. Podemos viver dois tempos ao mesmo tempo, podemos estar em dois espaços em simultâneo, as personagens podem ter uma aparência e serem outras…”, explica Pires, acreditando que este é um texto autobiográfico de Strindberg, encarnado nas personagens do oficial, do advogado e do poeta. “Estes três alter-egos discutem sobre a condição humana”, desta vez num palco ao ar livre. “Este espaço é uma igreja, tem uma envolvente que condiciona muito a perceção do espectador e também a forma como as pessoas estão em cena. É muito litúrgico.”
António Pires considera muito importante estar a encenar este texto agora. “Acho que a Humanidade está numa espécie de ponto de viragem. Há uma sensação de que algo está, de alguma maneira, a mudar. Estamos a pôr em questão muitas coisas que tínhamos como adquiridas”, diz, realçando o carácter redentor do texto: “A personagem principal entrega aos humanos essa responsabilidade de não serem derrotistas, de terem esperança.”
“Então, porque tenho de tratar dos cavalos? Limpar a estrebaria e espalhar a palha?”, pergunta a dada altura o oficial à filha do deus Indra. Ao que esta responde: “Para sentires vontade de sair daqui!”
Sonho > Ruínas do Carmo > Lg. do Carmo, Lisboa > T. 91 321 1263 > até 21 ago, seg-sáb 21h > €8 a €16