É um daqueles filmes que têm uma qualidade literária tão evidente que até custa a crer que não tenha sido adaptado de um livro. Mas não foi. É apenas uma brilhante obra cinematográfica em todas as suas vertentes.
Retrato da Rapariga em Chamas aparece como uma proposta estética. Há um quadro de uma jovem caminhando por uma pradaria com um longo vestido verde a arder. Estamos em finais do século XVIII e a obra é tão estranha como ousada. Guarda um mistério. É no desdobramento do objeto pictórico que o filme desenlaça a narrativa.
Uma pintora, mulher emancipada num mundo de homens, é contratada para fazer o retrato de uma jovem. O quadro serve como dote para um casamento arranjado pela mãe contra sua vontade. Perante a impossibilidade de a modelo posar, a artista concorda em pintá-la de memória, fazendo-se passar por dama de companhia, observando-a e tirando notas enquanto passeiam pela ilha da Bretanha, onde se mantém recolhida.
O olhar da pintora sobre a sua musa só se compara, ao nível do detalhe, com a capacidade de observação dos apaixonados. E, aos poucos, uma coisa vai tomando o lugar da outra, de forma natural e inevitável. O que o filme tem de melhor é todo o processo de sedução: lento, indizível, sublime, que depois se torna absolutamente arrebatador e incontrolável.
Pelo caminho, enquanto nos expõe a uma espécie de contenção e de euforia sentimental, fala-nos de importantes coisas, que fazem parte da voz da realizadora Céline Sciamma, sobretudo da condição feminina (centrada no século XVIII mas com leituras atuais), mostrando mulheres abafadas e condicionadas socialmente. Facilmente se estabelecem laços entre a personagem da pintora e Mary Shelley ou Louisa May Alcott. E, pela sua candura, o filme pode ser olhado como um Chama-me pelo teu nome (2017) no feminino. Mas diríamos que o filme de Sciamma, pictórica e narrativamente, é ainda mais perfeito.
Um dos filmes mais aplaudidos em Cannes, Retrato da Rapariga em Chamas, de Céline Sciamma, estreou-se a 12 de março em Portugal, poucos dias antes do encerramento dos cinemas, e continuará agora em estreia em todos esses cinemas, à medida em que estes forem reabrindo. É o caso do Cinema Ideal, em Lisboa, com reabertura marcada para esta segunda, 1 de junho.
Durante este mês, e dada a limitação do número de lugares (utilização de uma em cada duas filas e dois lugares de distância entre espectadores não co-habitantes), pede-se que seja feita reserva de bilhete, pelo telefone (T. 21 099 8295) ou email do Cinema Ideal (cinemaideal@cinemaideal.pt).
Os bilhetes têm o preço único especial reabertura de 5 euros. Existe também um bilhete Apoio Cinema Ideal, no valor de €10.
Nesta semana, além do filme Retrato da Rapariga em Chamas (14h, 16h, 21h30), estreiam-se também dois documentários, que deveriam, no mês de maio, ter assinalado os 75 anos do fim da II Guerra: Quem Escreverá a Nossa História, de Roberta Grossman (1-5 jun, seg-sex 19h) e Uma Vida Alemã, de Christian Krönes, Florian Weigensamer, Roland Schrotthofer e Olaf S. Müller (6-10 jun, sáb-qua 19h)
Retrato da Rapariga em Chamas > De Céline Sciamma, com Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami > 122 mim