1. A Sangrada Família, de Sandro William Junqueira
“O que vos estou a contar não tem um final feliz. Não tem. Tem buracos. Cortes. Cães. Axiomas. Fogo. Truca-truca. Metanol. Gatos. Denúncias. Europeus. É tudo muito frágil”, enuncia Ezequiel que, com Manuel e Teodoro, integra um áspero trio masculino com mágoas bíblicas. Evocando tradições e tragédias ancestrais, este livro exigente, com frases sincopadas como batimentos cardíacos, nasceu para ser teatro mas cresceu como romance. E por aqui passam traições amorosas, incêndios, segredos do medronho da serra de Monchique. A vida, portanto. Caminho > 240 págs. > €15,90
2. Embora Eu Seja um Velho Errante, de Mário Cláudio
Desfecho não é a palavra certa para este xadrez literário travado pelo autor com o poeta Tiago Veiga, para quem assinou uma vasta biografia. Mas este romance em três partes amplia, através das “conversas íntimas” das personagens, a dúbia fronteira entre realidade e ficção. A partir de documentos “descobertos”, incluindo o diário da segunda mulher de Veiga, Ellen Rassmunsen, artista irlandesa que, no outono de 1943, se instala no “casarão de trevas” do sanatório, afinam-se o retrato de Veiga e a sua sombra futura sobre o seu criador. D. Quixote > 176 págs. > €15,90
3. Figuras numa Paisagem, de Paul Theroux
Diz este romancista e autor de grandes livros de viagem que “estar na presença de faladores é um brinde para um escritor”. Theroux, 80 anos e lucidez afiada, é um falador nato nestes 30 ensaios que descrevem as costuras, o lado menos percorrido, o “encontro de baixo nível”, o “viajar para além do Google”. Do Havai ao Equador, de Thoreau (que dizia sentir-se perdido nas florestas) a Graham Greene, da criação de gansos às memórias de uma dominatrix, de Elizabeth Taylor a xamãs, tudo é filtrado pelas ferramentas do viajante: procurar a autenticidade. Quetzal > 567 págs. > €24,40
4. Um Bárbaro na Ásia, de Henri Michaux
Há muito esgotado, este clássico agora reeditado retoma a tradução de Ernesto Sampaio dedicada ao périplo de Michaux (1899-1984) por China, Índia, Japão, Malásia e Nepal. Disse Borges que, às vezes, não se percebe bem se ele elogiava ou criticava o que via. Mas inaugura-se, aqui, um sentido da viagem como experiência transformativa, em vez de paisagens contabilizadas como currículo: a atenção ao Outro, as minúcias, a subjetividade servem para reflexões, aforismos, “ilusão de desmistificar”. Maldoror > 240 págs. > €14
5. De Noite Todo o Sangue É Negro, de David Diop
A loucura suscitada pela violência das guerras é tema muito explorado. Mas o francês Diop consegue, neste romance breve distinguido com o prémio International Booker 2021, criar fulgor. As primeiras linhas do novelo literário (que, desfeito, obrigará a reler as pistas iniciais) transportam-nos para a consciência de Alfa Ndiaye: o soldado senegalês, combatente na I Guerra Mundial, a remoer as vozes dos antepassados e o remorso por não ter acabado com a agonia de Mademba Diop, seu “mais do que irmão” ferido. É o gatilho que o fará decepar as mãos dos alemães mortos, destravar o delírio. “E, vista de longe, a nossa trincheira apareceu-me como os lábios entreabertos do sexo de uma mulher imensa. Uma mulher aberta, oferecida à guerra, aos obuses e a nós, os soldados. Foi a primeira coisa inconfessável que me permiti pensar.” Mitos, redenção, lost in translation, tudo terá aqui um papel. Relógio D’Água > 128 págs. > €18
6. Raízes Brancas, de Bernardine Evaristo
Sátira minuciosa, inverte a História tal como a conhecemos: milhões de brancos europeus são capturados por esclavagistas negros e enviados para um Novo Mundo, nos denominados Japões Ocidentais (assim batizados por engano na descoberta do caminho marítimo para a Ásia…). Ecoando o clássico Raízes (1976), em que Alex Haley narrou a história do antepassado Kunta Kinte, este romance tem dois narradores: Doris Scagglethorpe, raptada em criança e a quem chamam Omorenomwara; e o seu dono, o antiabolicionista Kaga Konata Katamba I, que lhe venderá os filhos e deixará cicatrizes. Descritiva, irónica, implacável com os hábitos, roupas, tiques das classes dominantes, a autora criou um mundo atemporal em que convivem grilhetas, metro e música eletrónica, sob uma epígrafe de Nietzsche que desfaz ilusões: “Tudo está sujeito a interpretação; dada interpretação prevalece em dada época em função do poder e não da verdade.” Elsinore > 288 págs. > €17,69
7. Líbano, Labirinto, de Alexandra Lucas Coelho
Cumprido o primeiro aniversário da explosão que arrasou o porto e a cidade de Beirute, e no rasto da revolução de outubro de 2019, este volume é um retrato poderoso do país. Invocando referências literárias, usando fotografias por si tiradas, tecendo os fios da História com as experiências de proximidade das reportagens feitas no Médio Oriente, recorrendo à empatia e observação como ferramentas kapuscinskianas, derramando linguagem com ritmo musical, crendo nos afetos, Alexandra Lucas Coelho criou um testemunho que permanecerá na memória. Caminho > 200 págs. > €19,90
8. Memórias de um Craque, de Fernando Assis Pacheco
Uma outra reedição muito bem-vinda: esgotado há vários anos, este livro composto por 30 crónicas, que foram publicadas no jornal Record nos sábados de 1972, é um daqueles talismãs que vão passando de mão em mão, de geração em geração. É um reencontro com o prosador excelentíssimo, poeta da dita musa irregular e jornalista que desempoeirava qualquer tema, aqui fardado de calções e a usar os dribles com bola e a fauna circundante para fazer uma revisitação da infância, a sua em Coimbra. Tinta da China > 140 págs. > €15,90
9. Intervenções, de Michel Houellebecq
Livros há com que se luta, que se detesta, mas com os quais se cede ao prazer culpado de querer ver até onde vai a provocação ou a inteligência do autor – e há fortes probabilidades de que um deles ser de Houellebecq. Neste “livro de opinião”, reunindo textos, conversas, cartas, prefácios, o francês coloca-se a jeito: a Covid-19 é um “vírus sem qualidades”, a pandemia é um “não acontecimento”, Trump é um dos melhores Presidentes que a América já conheceu, o terrorismo e o militantismo são “meios de socialização”… Um bom desafio para os mais anestesiados reagirem. Alfaguara > 384 págs. > €20,90
10. Vercoquin e o Plâncton, de Boris Vian
Perto de Paris é uma festa neste primeiro romance, até agora inédito em português, de Boris Vian (1920-1959). Insuflado pela sua mordaz imaginação, por surrealismo, jazz, humor e jogos de linguagem, retrata a paixão do Major e da bela Zizanie no compasso de duas festas, regadas a hectolitros numa casa adornada com “esculturas sobre glândulas endócrinas”, glicínias “quimicamente puras”, e um “mackintosh domesticado”. E é aí que acontecem estas “surprise-parties” que celebravam o fim da guerra – um outro tipo de confinamento. E-Primatur > 312 págs. > €16,90