É uma discussão estafada, comum a outros estilos musicais alicerçados na tradição, essa de a modernização desvirtuar a alma do fado. Mesmo depois de Amália Rodrigues ou Carlos do Carmo, tão-só os dois maiores nomes da história do fado, tantas vezes terem provado o contrário, é assunto ainda hoje tratado com pinças, não só pelas novas gerações de fadistas como pela indústria e até pelo público. E é também por isso que este encontro improvável entre o premiado produtor catalão Raül Refree (colaborador de gente tão diversa como o ex-Sonic Youth Lee Ranaldo ou a estrela do novo flamenco Rosalía) e Lina, fadista residente no Clube de Fado há mais de uma década e entusiasta estudante da obra de Amália Rodrigues, é tão surpreendente quanto comovente; soa a novo, mas ao mesmo tempo também é familiar.

Reza a lenda que foi durante uma noite no Clube de Fado que Raül se apaixonou pela voz de Lina, também ela uma fadista atípica, nascida e crescida numa aldeia transmontana, que cantou pela primeira vez encavalitada em cima do trator do pai. Ao ouvi-la ali, sem qualquer amplificação, logo percebeu que tinham de gravar juntos, talvez a exemplo do que antes tinha feito no primeiro disco de Rosalía, Los Ángeles, ou no aclamado segundo álbum de Rocío Márquez, El Niño, dois trabalhos marcantes na renovação do flamenco.
O segredo, como muitos já nos ensinaram, é não desvirtuar, sublinhando com subtiliza e inteligência as características únicas do fado – e nisso Raül Refree parece ser mestre. Em estúdio com Lina, dispensou as guitarras e as violas, substituindo-as pelo piano e por uma panóplia de sintetizadores vintage, que envolvem a voz de Lina deixando-a brilhar como só o fado o permite, através da palavra, em temas sagrados como Barco Negro, Foi Deus, Medo ou Gaivota.