A Covid-19 tem matado milhões de pessoas em todo o mundo. Os fatores de risco para doença grave e morte, nesta altura do campeonato, são já mais do que conhecidos: idade avançada e comorbilidades, entre elas o excesso de peso e a obesidade.
Porém, apesar de se saber que a obesidade está diretamente relacionada com desfechos menos positivos da doença, o mecanismo subjacente é ainda desconhecido.
Novos dados, fornecidos por um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, nos EUA, ainda a aguardar revisão pelos pares e publicado online em outubro, vêm agora dar novas respostas, ao revelar que o SARS-CoV-2 infeta, não só, as células de gordura como também certas células do sistema imunológico que se encontram no nosso tecido adiposo, causando uma resposta defensiva prejudicial para o organismo.
Os investigadores de Stanford analisaram tecido adiposo humano em laboratório e descobriram que este é permissivo à infeção por SARS-CoV-2 e que essa infeção provoca uma resposta inflamatória, incluindo a secreção de mediadores inflamatórios típicos das formas graves de Covid-19.
Catherine Blish, uma das autoras principais do estudo, revelou ao The New York Times que, no caso das pessoas com excesso de peso, o nível de citocinas (qualquer proteína excretada por uma célula e que afeta o comportamento das células vizinhas) produzidas como resposta à infeção do tecido adiposo era “o mesmo observado no sangue de pacientes realmente doentes [com Covid-19]”.
“É uma resposta imunitária demasiado forte, que ataca o próprio corpo”, explica a investigadora principal do Instituto de Medicina Molecular (iMM) Luísa Figueiredo, que também é uma das mais renomadas investigadoras mundiais na área da Tripanossomíase africana (doença do sono) e da forma como o parasita que a causa se comporta no tecido adiposo.
Como explica a especialista, “se antigamente o tecido adiposo era considerado inerte e pouco interessante, nos últimos anos, tem-se visto que pode ser o local onde se alojam alguns vírus”. É o caso, por exemplo, do HIV, do vírus da Gripe A, de um adenovírus e de alguns micróbios e parasitas, como o tripanossoma que causa a doença do sono. “Se falamos de parasitas ou vírus que podem entrar no tecido adiposo, quanto mais obesas forem as pessoas mais suscetíveis estão a ter lá uma maior quantidade destes agentes patogénicos”, resume a investigadora.
“Não é por as pessoas serem gordas que o vírus vai sempre para o tecido adiposo”
“Há aqui uma grande especulação”, alerta, no entanto, Pedro Simas. O SARS-CoV-2, explica o virologista, provoca infeções virais das vias respiratórias e não evoluiu para infetar tecido adiposo. Quando, efetivamente, tal acaba por acontecer, o doente já está numa situação de virémia (o vírus circula no sangue e infeta todos os órgãos) e quer dizer que “algo na saúde destas pessoas se degradou tanto que o vírus tornou-se sistémico”.
Nestes casos, a pessoa está num estadio de Covid grave ou muito grave e muitos tecidos são infetados, inclusive a gordura. Pedro Simas sublinha que, “não é por as pessoas serem gordas que, quando são infetadas, o vírus vai sempre para o tecido adiposo e causa esta situação”.
A infeção da gordura é um efeito raro, defende o virologista. “Há muitas pessoas obesas que não têm Covid grave e, nas que têm, a situação não foi causada diretamente pela capacidade do vírus replicar-se na gordura”.
O que acontece, segundo o especialista, é que o facto de uma pessoa ser obesa contribui para o desencadear de infeção grave, devido a uma falta de saúde generalizada inerente à obesidade, associada, por exemplo, a problemas como insuficiência cardíaca ou diabetes.
“Não sabemos a ordem dos acontecimentos nem quais são os órgãos infetados primeiro e depois”, acrescenta Luísa Figueiredo que, ao contrário da investigação de Stanford, quando estudou o tripanossoma, o qual também se aloja no tecido adiposo, fê-lo em ratinhos vivos e conseguiu perceber que, logo no início, o parasita está no tecido adiposo em grande quantidade.
Medicamentos contra a Covid-19 direcionados à gordura?
“O que se percebeu no estudo da Universidade de Stanford, e isso é que é curioso, é que a presença do vírus no tecido adiposo causa, localmente, uma resposta inflamatória que corresponde, em muitos aspetos, à inflamação sistémica”, observa Luísa Figueiredo.
Esta descoberta levou os autores do estudo a supor que, talvez, a contribuição do tecido adiposo para a resposta inflamatória é maior do que aquilo que se tinha pensado inicialmente. Por esta razão, a equipa da Universidade de Stanford sugere que poderá ser benéfico tratar doentes Covid obesos com medicamentos que atuem localmente para reduzir a inflamação dos tecidos gordos.
Ainda assim, afirmar que, no caso das pessoas obesas, deveriam ser desenvolvidos tratamentos ou vacinas contra a Covid-19 mirados especificamente à infeção da gordura é, nas palavras de Luísa Figueiredo, “permaturo”.
Pedro Simas partilha da mesma opinião e sublinha que, quando a gordura está infetada, muitos outros órgãos e tecidos já estão infetados. “Uma pessoa gorda só tem infeção da gordura quando está numa situação que leva o vírus a invadir o sangue e a espalhar-se sistemicamente. Numa situação dessas, não penso que fazer terapia apenas para a gordura seja muito benéfico”.
Gordura aumenta risco de Covid-19 longa?
O estudo sugere ainda que o tecido adiposo pode ser uma espécie de reservatório de vírus. Luísa Figueiredo explica que esta ideia pode ser entendida de duas formas. Por um lado, temos mais células do nosso corpo que podem estar infetadas, por outro, às vezes, estes agentes patogénicos podem multiplicar-se menos dentro do tecido adiposo, “permanecendo lá de forma latente, sem causar muita doença, mas podendo causá-la durante muito tempo ou acordar mais tarde e causar doença grave, nessa altura”.
Esta capacidade de o tecido adiposo ser um reservatório de agentes patogénicos é algo que a cientista e a sua equipa de investigação têm vindo a estudar. No entanto, Luísa Figueiredo sublinha que, apesar de o artigo especular que tal característica possa influenciar uma maior propensão das pessoas obesas para desenvolverem Covid longa, “ainda não foi provado que esta persistência no tecido adiposo aconteça realmente com o SARS-CoV-2”.