No início desta semana, contabilizavam-se 56 surtos ativos de Covid-19 em lares, somando mais de mil pessoas infetadas. O aumento dos casos nas estruturas de acolhimento para idosos levou o Governo a anunciar a realização de um estudo serológico com o objetivo de comparar a imunidade dos utentes – mais vulneráveis – com a dos funcionários, sendo que ambos os grupos foram vacinados na mesma altura.
Os resultados da investigação, da responsabilidade da Fundação Champalimaud e do Algarve Biomedical Center, só deverão ser apresentados em setembro. Antes dessa data, a Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) defende que todos os professores e funcionários dos estabelecimentos de ensino deveriam realizar testes serológicos, que permitem medir a quantidade de anticorpos presentes no organismo, para avaliar se será necessário serem inoculados com uma dose extra, antes do início do ano letivo.
Os especialistas, no entanto, aconselham prudência. “Os testes serológicos são muito importantes, eles dão-nos pistas valiosas sobre a imunidade, mas não podem ser o único critério para decidir se é preciso uma dose de reforço da vacina”, afirma a imunologista Helena Soares.
“As análises serológicas medem a quantidade de anticorpos presentes num dado momento e, não sendo longitudinais [feitas ao longo do tempo], não nos dizem se eles estão a aumentar ou a diminuir”, acrescenta a investigadora do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) Maria João Amorim.
“Faz parte do processo natural os anticorpos decaírem, mas isso não é necessariamente sinónimo de as pessoas não estarem protegidas”, corrobora o patologista Germano de Sousa.
Além disso, os testes serológicos não conseguem distinguir a funcionalidade dos anticorpos detetados, ou seja, são incapazes de identificar os anticorpos neutralizantes, aqueles realmente eficazes a impedir a infeção.
Um estudo publicado no final do mês passado no The New England Journal of Medicine estabelece uma correlação entre níveis elevados de anticorpos neutralizantes e uma menor possibilidade de ser infetado pelo SARS-CoV-2, depois de analisar os dados de cerca de 11 500 profissionais de saúde israelitas imunizados com o fármaco da Pfizer/BioNTech.
Contudo, a investigação não responde a uma questão essencial: “Qual a quantidade de anticorpos necessários para conferir proteção contra o vírus?”, interroga Helena Soares. A resposta a esta pergunta é indispensável para aferir com rigor a imunidade garantida pelas vacinas. E, eventualmente, definir em que situações é preciso uma dose de reforço.
A investigadora do Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC) da Universidade Nova de Lisboa explica que, mais importante do que a queda dos anticorpos, é a velocidade a que eles diminuem. “Estudos realizados nos Estados Unidos da América revelam que o declive é moderado ao fim de seis meses”, afirma.
Ao mesmo tempo, há outra parte fundamental do sistema imunitário que escapa à análise serológica. Os linfócitos T, por exemplo, que dão instruções às células B para produzirem anticorpos contra a infeção, também não são identificadas por ela. Assim como as células de memória T e B , que respondem mais rapidamente a um agente patogénico. Elas tornam-se altamente especializadas – neste caso no SARS-CoV-2, graças à ação da vacina – e têm um tempo de vida extenso.
Quais os critérios ideais para a dose de reforço?
O Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) tem em curso um estudo sobre a resposta imunitária humoral (mediada por anticorpos) e celular (mediada por linfócitos T) à vacina contra a Covid-19 no universo dos seus 9 mil funcionários.
Os resultados preliminares da investigação mostram que, três meses após a conclusão da vacinação, dá-se “uma acentuada descida dos anticorpos, sendo esta mais marcada em indivíduos que nunca foram expostos ao vírus, o que poderá não ser forçosamente sinónimo de perda de imunidade, já que esta poderá ser assegurada pela imunidade celular e pela presença de linfócitos B de memória”.
A imunidade dos funcionários voltará a ser avaliada seis e 12 meses após a inoculação, o que permitirá obter conclusões mais robustas.
Todavia, os primeiros dados revelam que “98,2% dos indivíduos que nunca foram expostos ao vírus vacinados desenvolveram imunidade celular adequada 21 dias após completarem o processo de vacinação” e que, “curiosamente, os indivíduos que não desenvolveram imunidade celular adequada apresentam uma resposta humoral eficiente”.
A coordenadora de diagnóstico laboratorial de Covid-19 do CHUC, Lucília Araújo, uma das coordenadoras do trabalho, acredita que a terceira dose da vacina será precisa “em breve”, afirmou ao jornal Observador. E avança a hipótese de os profissionais de saúde voltarem a ser inoculados antes do final do ano.
Germano de Sousa classifica de “desnecessário” avaliar a imunidade celular de toda a população, não só por essas análises serem “morosas e dispendiosas”, mas sobretudo por “ser evidente que a vacina protege
Germano de Sousa classifica de “desnecessário” avaliar a imunidade celular de toda a população, não só por essas análises serem “morosas e dispendiosas”, mas sobretudo por “ser evidente que a vacina protege contra o SARS-CoV-2”, olhando para o número de infeções, de internamentos e de mortes.
E considera “extemporâneo falar da terceira dose”, segunda no caso de quem foi imunizado com a Janssen. “Não quer dizer que não venha ser necessário, se surgir uma nova variante resistente aos fármacos, mas ainda não estamos nesse momento. Agora, precisamos é de chegar aos 80 ou 90% da população com a vacinação completa”, defende o antigo bastonário da Ordem dos Médicos.
A imunologista Helena Soares não exclui a possibilidade de vir ser necessária uma dose extra, especialmente para os grupos populacionais mais vulneráveis, mas diz ser “prematuro” delimitar já um intervalo de tempo para a administração de uma nova injeção, à luz dos dados existentes.
Contudo, sublinha ser essencial monitorizar três parâmetros que, em conjunto, podem permitir avaliar a necessidade de reforçar a inoculação: “Estudos serológicos, que nos possam ajudar a perceber qual o limiar de anticorpos necessários para estar protegido; testes imunológicos, que revelem a durabilidade das células T e B e a vigilância epidemiológica, que permite saber a proporção de pessoas vacinadas infetadas”.
Também o imunologista Luís Graça, membro da Comissão Técnica de Vacinação Contra a Covid-19 (CTVC), afirmou em conferência de imprensa que “os testes serológicos não estão recomendados em Portugal, nem nos outros países, para servir de base à tomada de decisões sobre o estado de proteção conferido pelas vacinas contra a Covid-19”.
O especialista acrescentou que “há uma monitorização contínua da efetividade das vacinas que vão sendo administradas na população para verificar se existe uma perda de efetividade, que se mede com o aumento do número de infeções, e se isso deve condicionar medidas para reforçar a proteção de grupos populacionais onde esta efetividade possa estar a decair”.
O investigador do Instituto de Medicina Molecular (iMM) defendeu, ainda, que a “decisão sobre a necessidade de uma terceira dose terá que ser tomada com base em dados da proteção que as vacinas continuam a manter contra a doença que é causada por esta infeção, e não por dados serológicos”.
A CTVC está atenta aos indícios que possam sugerir a eventual necessidade de aumentar a proteção e “continua a monitorizar os dados disponíveis e a procurar saber se há grupos particulares em que a perda de imunidade é mais precoce”, garantiu Luís Graça.