A polémica instalou-se há uma semana quando o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa pediu às autoridades sanitárias que explicassem publicamente por que motivo fora imposto isolamento ao primeiro-ministro, apesar de estar vacinado e na posse de um certificado digital de Covid-19, após este ter tido contacto com um infetado com Covid-19.
A dúvida que assolou o presidente da República, provavelmente, também já lhe passou pela cabeça. A justificação dada pela Direção Geral da Saúde (DGS) prende-se com questões normativas, nomeadamente a Norma 015/2020, relativa ao isolamento profilático, que é aplicada de igual forma tanto a pessoas vacinadas como não vacinadas, no nosso país.
Além de definir que “todos os contactos de alto risco estão sujeitos a isolamento profilático, no domicílio ou noutro local definido a nível local, pela Autoridade de Saúde”, a norma diz ainda que o “fim do isolamento profilático corresponde ao 14º dia após a data da última exposição de alto risco ao caso confirmado, conforme estabelecido na Declaração de Isolamento Profiláctico”.
Mas será que ainda faz sentido manter a Norma 015/2020 nos moldes em que foi criada há um ano, tendo em conta o conhecimento científico que entretanto passamos a ter sobre a pandemia e o efeito das vacinas?
“Na minha opinião não faz sentido”, diz o epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Manuel Carmo Gomes, que acredita que “está na altura de libertarmos as pessoas completamente vacinadas da obrigatoriedade da quarentena”.
Embora não sejam 100% eficazes contra infeção em geral, incluindo a assintomática, “as vacinas conferem uma proteção que a literatura sugere estar na zona dos 80% a 90%”, relembra o especialista, referindo que resta agora perceber bem se os 10% a 20% de pessoas que se infetam, apesar de estarem vacinadas, têm capacidade de transmitir a doença a outros.
“Em principio, essa capacidade é baixa”, revela Carmo Gomes. Ou, pelo menos, “é inferior ao que se esperaria em relação a pessoas não vacinadas, porque os estudos mostram que a carga viral dessas pessoas é inferior à carga viral das pessoas que foram infetadas e não tinham vacina”.
A carga viral dessas pessoas [vacinadas e infetadas] é inferior à carga viral das pessoas que foram infetadas e não tinham vacina
manuel carmo gomes – epidemiologista
Se numa fase inicial, “em que havia muitas pessoas de risco que ainda não estavam vacinadas”, os virologistas Pedro Simas e Celso Cunha admitem que a quarentena dos poucos vacinados, que contactassem com pessoas identificadas como infetadas, poderia justificar-se, “neste momento, isso já não faz muito sentido”, diz Simas, porque, segundo ambos os especialistas, estas pessoas já não constituem um risco de Saúde Pública muito grave.
Manuel Carmo Gomes defende ainda que, quando se coloca nos pratos da balança o absentismo que tais quarentenas podem provocar e a desconfiança na eficácia da vacinação, que este tipo de medidas pode espoletar na opinião pública, “as vantagens que existem em não obrigar a quarentena pessoas completamente vacinadas pesam muito mais”.
Mais cauteloso é o especialista em Saúde Pública da Universidade Católica Portuguesa Henrique Lopes que relembra que o efeito das vacinas contra a Covid, “ou de qualquer vacina no geral”, pode ser diferente em pessoas imunodeprimidas ou pessoas em processo de senescencia imunitária pela idade (deterioração natural do sistema imunitário), nas quais “a percentagem de defesa é menor em valor e em intensidade”.
Por esta razão, e porque quando se aplica uma norma a todos os vacinados ela terá de ter em conta também estas pessoas, o especialista fala de um período de segurança de sete dias, ou, “por percaução”, de 10, ao fim dos quais, “se a pessoa já está vacinada, se calhar até um teste antigénio feito em local certificado para o efeito e por pessoas capacitadas seria suficiente” para terminar o isolamento.
Também Manuel Carmo Gomes considera “recomendável” que os vacinados, para que se possam “libertar da quarentena”, façam um teste. “Dois dias após o contacto, caso o teste seja PCR, ou quatro dias, caso seja antigénio”.
Nos dias que medeiam o momento do contacto e o do teste, Manuel Carmo Gomes não acredita que seja necessário estar de quarentena, “se não houver sintomas”.
Normas coerentes com a evidência científica
Com uma posição menos radical que as de Manuel Carmo Gomes ou Pedro Simas, o investigador principal do Instituto de Medicina Molecular (iMM) Miguel Prudêncio e o coordenador do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos Filipe Froes referem que, enquanto houver uma norma da Direção Geral da Saúde que imponha uma quarentena de 14 dias, ou dez com teste PCR negativo, esta deve ser sempre cumprida.
No entanto, ambos referem que as indicações têm de ser atualizadas de acordo com a evidência científica mais recente. Miguel Prudêncio considera fundamental que, nesta fase, as pessoas não duvidem da importância da vacinação e refere que faria sentido existir uma diferença entre as regras que são impostas às pessoas que já foram vacinadas e àquelas que ainda não foram.
“Não é muito lógico, estando a evidência cientifica toda a demonstrar que a probabilidade de transmissão é muito reduzida nas pessoas vacinadas, que isso não se traduza também num protocolo de procedimento e isolamento diferente para quem tem vacina e quem não tem”, diz o especialista.
Também Filipe Froes é da opinião que “as normas têm de ser atualizadas com precocidade à medida que mais evidência científica vai estando disponível”. O pneumologista refere que, com base na premissa que os vacinados “têm uma grande capacidade de não se infetarem e, mesmo se se infetarem, transmitirem menos, muito países já dispensam de quarentena as pessoas com esquema vacinal completo”.
As normas têm de ser atualizadas com precocidade à medida que mais evidência científica vai estando disponível
filipe froes – coordenador gabinete de crise da ordem dos médicos
Autoridades que equacionem estes fatores e adotem regras concordantes com as reais probabilidades da transmissão, tendo ainda em conta a perceção pública de que as vacinas realmente fazem a diferença, é a linha que une a opiniões de todos os especialistas que falaram com a VISÃO.
“Parece-me haver um consenso entre a maioria das pessoas que têm de tomar decisões sobre isto”, diz Carmo Gomes, mas acrescenta, “agora é preciso passar isso ao papel e formalizar uma norma, uma orientação geral sobre este assunto, algo que tenho esperança que seja feito”.
Vacinados positivos e surtos localizados são as exceções à regra
Mas atenção, há exceções. A primeira, e mais evidente, é se o vacinado que teve um contacto de alto ou baixo risco apresentar sintomas. “Aqui, sem dúvida tem de fazer um teste e, caso este dê positivo, tem de fazer isolamento”, diz Carmo Gomes.
Outro contexto para o qual o epidemiologista abre exceções são os surtos. “Se vemos que o número de casos está a a subir numa dada comunidade, aí alguma se está a passar e tem de ser investigada e, enquanto não se esclarecem as razões, a coisa mais segura é isolar essas pessoas todas”. Um tipo de surto onde, segundo o especialista, se deve isolar toda a gente, são os surtos que ocorrem em lares de terceira idade.
Apesar de, por norma, quando um vírus entra num lar, “ frequentemente através de um funcionário que se recusou a ser vacinado”, os idosos infetados já não manifestarem sintomas, Manuel Carmo Gomes explica que estes são ambientes “normalmente fechados e sem ventilação”, onde as pessoas, pela idade, “têm um sistema imunitário mais enfraquecido que a média da população” e onde existe uma grande repetitividade de contactos “com dificuldade em isolar apenas alguns dos utentes”.