“Já estamos numa quarta vaga em Lisboa com o risco da situação se poder disseminar para o resto do País”. Numa frase, o Coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, Filipe Froes, resume o que também dizem os números e cálculos do professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Carlos Antunes, membro da equipa que desde o início da pandemia faz a modelação da evolução da doença.
Segundo o boletim da Direção Geral da Saúde (DGS), com dados atualizados até às 23h59 de 15 de junho, o país acordou esta quarta-feira com mais 1350 novos casos de Covid-19, 928 dos quais concentrados na região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT). Carlos Antunes revela-se surpreendido pelo número e confessa que esperava um máximo de mil novos casos, comentando,“quando isto começa a surpreender quem tem sensibilidade para analisar os números, se calhar o controlo não está a ser efetivo”.
O especialista explica que os 928 casos de Lisboa e Vale do Tejo vão ser depois distribuídos pelos dias em atraso, o que indica que, provavelmente, está a haver um atraso nos inquéritos epidemiológicos e nos rastreios dos contactos, “uma situação própria de um quadro de falta de controlo de rastreio”.
Com um Rt de 1.15, a região de LVT já atingiu os 200 casos por 100 mil habitantes. Além disso, a 14 de junho, a cidade de Lisboa registava 271 casos por 100 mil habitantes, “com potencial de atingir, nos próximos quatro dias, os 300 casos por 100 mil habitantes”, diz Carlos Antunes.
Se os concelhos com pouca população, como a Golegã, Aljezur ou a Sertã, conseguem controlar o problema com a testagem e medidas de Saúde Pública, o mesmo não se pode dizer de municípios com muita população. Segundo o especialista, a região de LVT já tem 11 concelhos acima de 120 casos por 100 mil habitantes e três concelhos (Lisboa, Barreiro e Sesimbra) acima de 240.
“Esta subida não começou agora, começou a dar os primeiros sinais a 7 de maio e intensificou-se a partir de dia 12”, relembra o professor de Saúde Pública da Universidade Católica de Lisboa, Henrique Lopes. O especialista explica que ainda que o crescimento não tenha sido exponencial, até porque “há aqui um travão”, ou seja, a vacina, “é crescente e é muito crescente”.
Carlos Antunes não é da mesma opinião. “LVT está há 37 dias com o Rt acima de 1.0 e com uma taxa de aumento diário de 4,5% ao dia”. Isto significa que, a cada 15 dias, a região duplica o número de novos casos.
Manuel Carmo Gomes, professor de epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, acredita que estes números poderão comprometer a situação epidemiológica do resto do País, uma vez que “Lisboa não está isolada e não temos, nem vamos fazer, nenhuma cerca sanitária”. O epidemiologista diz que, inclusive, os efeitos já começam a aparecer. “Há 15 dias os Rt estavam todos abaixo de 1, exceto Lisboa, e agora já está tudo acima de um”.
“Lisboa e Vale do Tejo já está a empurrar o País inteiro para a barreira dos 120 casos por 100 mil habitantes”, concorda Carlos Antunes. Segundo as contas do especialista, Portugal regista, à data de hoje, 105 casos por 100 mil habitantes e está a quatro dias de atingir a barreira do 120.
Porque razão LVT é o motor da quarta vaga?
A mais de um mês das celebrações do Sporting, a razão para a subida de novos casos, registada em Lisboa desde 12 de maio, não pode ser justificada apenas com o evento que juntou milhares de pessoas, muitas delas sem máscara, na capital. Manuel Carmo Gomes refere que, nestas situações, há um conjunto de circunstâncias que geram uma dinâmica, “uma espécie de motor de arranque que, uma vez ligado, se o carro não for travado, vai por aí adiante”.
O epidemiologista acredita que a principal razão para o aumento de novos casos na região de LVT, “olhando a idade das pessoas que estão a ser mais infetadas”, é a socialização e o baixar da guarda relativamente a medidas de distanciamento, por parte dos jovens adultos, “onde está a maior parte dos casos”. “Acho que, de um modo geral, as pessoas estão a relaxar as precauções de distanciamento e a socializar mais”.
Henrique Lopes afirma que, “tal como em certas zonas de Inglaterra e da Escócia, estamos a sentir um fenómeno em que as camadas mais afetadas são as mais jovens”. As causas apontadas pelo especialista são a nova variante Delta e o facto de tais camadas etárias ainda não terem sido vacinadas. Apesar de acreditar que o fenómeno não dará origem a um crescimento exponencial de novos casos, Herique Lopes teme pelo convívio, com a chegada das férias, em praias e outros locais “onde os adolescentes se encontram de forma menos regrada do que nas escolas”.
Carlos Antunes defende que à dinâmica de aumento que a região adquiriu em maio, “com o desconfinamento total, sem nenhuma medida preventiva para evitar esse aumento”, juntou-se um conjunto de fatores sociais, de ajuntamento e eventos “que foram super-potenciadores da infeção” e ainda o facto de Lisboa ser uma metrópole com uma ligação internacional de grande dimensão, “com mais possibilidade de ter incursão da variante Delta”.
“É o conjunto de tudo. Não havendo, do ponto de vista da Saúde Pública, medidas de mitigação que tentem atenuar ou reduzir este aumento de contágios, isto só para quando bater na parede”, afirma o especialista.
“Neste momento, para bem de todos e bem do país, o mais urgente é garantirmos uma adesão total às medidas de prevenção e controlo”, afirma Filipe Froes, defendendo que, “somos o problema, mas somos também a solução”. Segundo o pneumologista, “medidas não faltam, o desafio é atuar com precocidade e antecipação para prevenir maiores danos”.
O médico destaca como principal objetivo “ganhar tempo” e, para isso, “não se trata de ter medidas, mas antecipar a leitura da realidade e implementar, a cada momento, as medidas mais adequadas para evitar a transmissão na comunidade”.
Urgente antecipar medidas de prevenção e controlo
Manuel Carmo Gomes não tem dúvidas que “não se devia estar à espera desta história dos 15 em 15 dias, pois quanto mais se espera maior o aumento do número de casos”.
“Acho que se deviam tomar medidas ontem e não sei se vão ser suficientes. A partir do momento em que o crescimento começa a ser rápido, como se está a observar, é muito difícil ir lá com medidas suaves de confinamento”, alerta o epidemiologista, que se confessa “pouco animado” em relação a situação de Lisboa e “depois daqui para o resto do país”.
Henrique Lopes é da mesma opinião e refere mesmo que “o apertão” devia ter sido dado já há um mês, porque “é muito mais fácil seguir e controlar um número pequeno de cadeias, do que quando, como agora, temos mais de uma centena de cadeias a correrem livremente na região, para o mesmo número de equipas de rastreio”.
Carlos Antunes avisa que “não podemos deixar a pandemia andar à solta, como está a acontecer em LVT,” e defende que “esperar mais uma semana para tomar uma decisão que é inadiável, é só adiar o problema”. O especialista acredita que estamos ainda na fase de podermos, “com algumas medidas mais restritivas”, controlar a situação. No entanto, tem de ser algo imediato.
“Esta forma de decidir se um município fecha ou não de 15 em 15 dias é algo que não é compatível com uma pandemia”, afirma, dando o exemplo positivo da decisão pro-ativa do município de Sesimbra, que decidiu não avançar no desconfinamento, apesar de poder fazê-lo.
Lisboa a sete dias de atingir o limite de camas em UCI
Segundo o último boletim da DGS, Portugal tem agora 351 pessoas internadas, 83 das quais em Unidades de Cuidados Intensivos (UCI). Certo que o valor parece longe da linha vermelha definida pelo Governo (245 camas ocupadas em UCI), mas Manuel Carmo Gomes avisa que, mais que olhar para valores, é importante analisar tendências. “A tendência está a subir desde o início de junho, tanto em enfermaria como em UCI, sobretudo em Lisboa e Vale do Tejo. Se se mantiver, vamos em direção à linha vermelha das UCI”.
De facto, em Lisboa e Vale do Tejo, com 52 camas de UCI ocupadas, estamos a sete dias de atingir o limiar de camas de UCI definido nas linhas vermelhas para a região (85 camas), revela Carlos Antunes.
Ainda assim, Manuel Carmo Gomes mostra-se pouco preocupado com a UCI, uma vez que as pessoas que estão a ser internadas, em média, são mais novas e com menos probabilidade de precisarem de Cuidados Intensivos. “Já estamos com uma idade média de internamento em enfermaria de 58,3 e viemos a descer de uma média de 70 anos de idade”, revela.
Apesar de desvalorizar o crescimento exponencial do número de camas ocupadas, “porque vínhamos de números muito baixos e o aumento é ainda perfeitamente controlável”, Filipe Froes sublinha a importância de antecipar a evolução do crescimento para números que possam pôr em causa não só a resposta aos casos Covid como, “mais uma vez, perturbar a atividade não Covid”.
O pneumologista defende que a linha vermelha deu “uma sensação de falsa segurança, nomeadamente em UCI” e deveria ser atualizada face à nova realidade pandémica, consoante a pressão epidemiológica de cada região. “Esse limite foi estabelecido quando tínhamos mil internamentos, zonas requalificadas para UCI que, entretanto, voltaram à sua função base, e médicos de outras especialidades, bem como internos que suspenderam o internato, alocados à UCI”.
Além de afirmar que a linha vermelha deveria corresponder a não mais que 15% das camas de UCI de cada região, Froes defende também a criação de linhas amarelas de prudência e alerta, “entre 8% a 10% da lotação de cada região”.