O nome é estranho, a própria doença também: o mieloma múltiplo é um cancro nos plasmócitos, ou seja, se numa situação normal este tipo de células, que existem em pequena quantidade na medula óssea, são responsáveis pela produção de imunoglobulinas – anticorpos – com funções importantes na imunidade, os plasmócitos existentes em pessoas com mieloma múltiplo são anormais e aumentam de forma descontrolada. Nestes casos, estas células vão ocupar a medula óssea e produzir imunoglobulinas disfuncionais.
Sendo o segundo cancro hematológico mais comum do mundo, é, no entanto, difícil de diagnosticar, também porque os sintomas são inespecíficos. “De facto, na maioria das vezes são desvalorizados e confundidos com outras situações que se vão vivendo ou associados a outras doenças mais comuns e mais faladas no geral”, explica à VISÃO Rui Bergantim, hematologista no Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, e membro do Grupo Português de Mieloma Múltiplo da Sociedade Portuguesa de Hematologia (SPH).
Ainda assim, esclarece o especialista, os principais sintomas traduzem as manifestações clássicas desta doença, como anemia, lesões ósseas, lesão renal e valores de cálcio aumentados, por exemplo. “O cansaço que se vai prolongando no tempo até atingir uma exaustão inexplicável é um dos principais sintomas que levam o doente ao médico, detetando-se depois anemia, por exemplo”, diz Rui Bergantim. Também dores ósseas e fraturas espontâneas podem ser sinais de mieloma múltiplo, assim como o aparecimento de lesões renais agudas sem que exista qualquer obstrução. “As infeções de repetição, principalmente as respiratórias, são muito comuns ao diagnóstico desta doença e também podem ser sinais de que existe uma alteração no sistema imune”, esclarece o médico.
Neste caso, a suspeita é fundamental para que se possa confirmar o diagnóstico de maneira rápida, através da análise de vários exames. “Inicialmente, são feitas análises simples de sangue para se verificar se existe anemia, cálcio aumentado ou alteração da função renal. São ainda realizadas análises à urina para se avaliar, por exemplo, a excreção anormal de proteínas e são realizados exames de imagem – radiografia e tomografia computadorizada (TAC) – que podem vir a evidenciar lesões ósseas ou extra ósseas” explica Rui Bergantim. Depois dos resultados, e caso se mantenha uma forte suspeita de mieloma múltiplo, o doente deve ser referenciado a um hematologista para estudos específicos de sangue, urina e imagem.
“Também pode ser necessário o estudo da medula óssea com uma biópsia ou aspirado medular”, acrescenta o médico. “Mas estão em curso alguns estudos que pretendem substituir estes dois exames por estudos do sangue periférico, através da deteção precoce da existência de células malignas em circulação, as chamadas biopsias líquidas”, diz ainda.
“Reconhecer os sinais de alerta é fundamental para se realizar um diagnóstico precoce, porque isto vai influenciar o percurso do doente para sempre”, garante o médico, referindo que os diagnósticos tardios podem fazer com que os doentes fiquem dependentes de hemodiálise ou imobilização por massas, ou desenvolvam fraturas na coluna vertebral.
Um cancro (ainda) muito desconhecido por todos e sem cura, mas com enormes evoluções nos tratamentos disponíveis
Um estudo recente português concluiu que surgem, todos os anos, 7,8 novos casos por 100 mil habitantes de mieloma múltiplo, sendo, em Portugal, mais prevalente em homens (54%), e afetando sobretudo a população idosa (58% dos doentes que participaram na investigação tinha idade igual ou superior a 70 anos e apenas 9% tinha menos de 55 anos). Segundo o European Cancer Information System, morrem com esta doença quase 7 pessoas por cada 100 mil habitantes no País todos os anos.
“O facto de o Mieloma Múltiplo ser uma neoplasia rara, apesar de afetar muitos portugueses, traz grande desconhecimento para os doentes e pessoas próximas, o que dificulta a forma como vão encarar esta doença e os tratamentos”, explica Rui Bergantim. Por outro lado, os próprios tratamentos têm-se tornado cada vez mais promissores e, ao longo dos últimos anos, a investigação desta doença tem permitido desenvolver novas e eficazes formas de a combater.
Neste momento, estão disponíveis várias classes de fármacos como imunomoduladores, inibidores de proteassomas e anticorpos monoclonais que, combinados, têm revelado “resultados entusiasmantes”, quer ao nível do diagnóstico como de recaídas. “Mais recentemente, têm surgido tratamentos como anticorpos monoclonais biespecíficos ou terapia celular CART, que prometem revolucionar a forma como tratamos esta e outras doenças”, explica o especialista, alertando, contudo, para a importância de cada doente ser “avaliado individualmente e de acordo com as suas comorbilidades”, para que se garanta um plano de tratamento adequando e, consequentemente, uma melhoria na qualidade de vida do doente.
Não revolucionário ou recente, mas “fundamental”, é o transplante de medula óssea, indispensável para os doentes com menos de 70 anos e sem comorbilidades, garante o médico.
Neste momento, e apesar de ser ainda uma doença incurável, existem doentes que já vivem até 15 anos depois do seu diagnóstico. Mas é essencial continuar a trabalhar nos tratamentos do mieloma múltiplo, afirma Rui Bergantim. “É importante continuar a definir e a aperfeiçoar quem vai beneficiar de cada tratamento, assim como é preciso melhorar os seus períodos de duração, muitos deles contínuos no tempo, e definir como é seguido ao longo dos anos”, defende.