Em jovem, aspirava ser jogador profissional, mas, porque “queria casar-se e ter um emprego para pagar as contas”, fez carreira em marketing na indústria de colchões e conduziu projetos de investigação sobre hábitos de sono. Queria perceber por que razão os desportistas de elite não davam o devido crédito à qualidade do sono. Até que um dia teve um acaso feliz: conheceu Alex Ferguson e, da noite para o dia, a sua vida mudou. Para tal contribuiu o ter ajudado um dos jogadores do Manchester United a aliviar dores de costas e a dormir melhor. Foi convidado para ser coach do sono da equipa e nunca mais parou. De Nottingham para o mundo, Nick Littlehales tem trabalhado com jogadores internacionais de futebol e râguebi, ciclistas e atletas olímpicos e paralímpicos. Tem presença regular em programas de televisão, na rádio, em jornais e podcasts e continua a aceitar convites para dar a conhecer a sua abordagem noutras áreas de atividade além da desportiva.
Aos 68 anos, mais de 20 de experiência como coach do sono e apoiando-se nos estudos aliados à tecnologia, Nick explica as vantagens de integrar a sua técnica nas empresas e na vida de todos nós.
O que estaria a fazer se não tivesse iniciado carreira a vender colchões?
Se não tivesse ficado no grupo Slumberland, talvez hoje andasse a correr mundo enquanto jogador de golfe profissional. Era bom em desporto e cheguei a praticá-lo semiprofissionalmente durante cinco anos, no final dos anos 1970 e princípio dos 1980.
Já esteve em Portugal?
Sim, em Lisboa, por ocasião do Euro 2004, a trabalhar com a seleção inglesa. Fui várias vezes ao Algarve, pois os meus sogros iam lá de férias e a minha ex-mulher e familiares também têm casa lá.
Sabe então o que é não ir para a cama cedo?
[Risos.] Sim, muitas culturas não estão interessadas nisso e têm outras abordagens ao sono.
O que mudou nessa área, nas últimas três décadas?
Nos final dos anos 1990, a tecnologia era muito limitada. Os social media, que não tinham a relevância que têm hoje. Passou-se para uma cultura de rendimento 24/7 em todas as áreas da vida. O mundo ficou mais exigente e quando não se está a fazer uma coisa é suposto estar a fazer-se outra.
Com quantas pessoas já trabalhou no mundo do desporto profissional de elite?
Muitas. Homens e mulheres de todas as idades e tipos de desporto: râguebi, futebol, esqui, snowboard, arco, tiro. Os clubes, as organizações e as pessoas que me procuram querem recuperar física e mentalmente com uma abordagem específica, tendo em conta padrões, ritmos, ciclos, luz e ausência dela, timings, temperatura… Trabalhei para o Real Madrid, o Manchester City, a seleção britânica, entre outros, e agora tenho a cargo o treino com a equipa britânica para os Jogos Olímpicos de 2020, em Tóquio.
Que substâncias se produzem num sono reparador?
A glândula pineal produz serotonina, que nos faz acordar bem-dispostos, e melatonina, que só acontece na ausência de luz. Incluindo a dos equipamentos digitais.
O que é a técnica R90, de que costuma falar?
O R90 foi o termo que encontrei para criar nas pessoas outra perceção face ao sono. Um jogo de futebol dura 90 minutos e tem intervalo a meio. No meio académico e clínico medem-se as ondas cerebrais em períodos de 90 minutos. Cinco ciclos equivalem a 7,5 horas de recuperação física e mental, e um atleta que não consiga ter esta distribuição de tempo pode dividir 24 horas por 90 minutos e descansar com cinco ciclos diários, ou 35 semanais.
A ideia é recuperar, independentemente das circunstâncias ou dos fusos horários?
Aplica-se aos atletas e a uma parte significativa da população ativa: enfermeiros, médicos ou pilotos, mas não tem só que ver com as exigências do trabalho. O estilo de vida atual e as exigências que ele nos coloca é que pesam mais. Pode ser o trabalho por turnos ou à distância, mas igualmente os serões que fazemos, ou as noitadas com amigos.
Como fazem os habitantes de zonas do globo com longos períodos sem luz?
A abordagem R90 teve um impacto muito positivo nos países escandinavos. Hoje, temos a possibilidade de recorrer à tecnologia para balancear o tempo prolongado de exposição à luz ou a falta dela. É o caso das aplicações grátis que medem o nível de luminosidade e permitem saber se está próximo, ou não, daquele que precisamos para funcionar que se situa nos 10 mil lux. Quando a luz-dia escasseia, podemos aumentar artificialmente essa exposição com dispositivos específicos. No caso oposto, existem óculos próprios para reduzir o excesso de luz-dia.
A mudança de hora de verão e de inverno justifica-se?
Tal como a luz elétrica mudou as nossas vidas dentro de casa e nos expôs ao sono monofásico, tivemos a mudança de hora para poupar energia e tempo, que começou no pós-guerra e se mantém. Em vez de 12 horas de luz-dia, quatro de luz mais fraca, quando o Sol se põe (âmbar, vermelho, amarelo, violeta), e oito para dormir e recuperar, temos a mudança de hora a alterar tudo isto: oito horas de dia no inverno e 16 horas de luz no verão, o que nos expõe a um excesso de luz durante uma parte do ano e a um débito na outra. Na hora de inverno, produzimos mais melatonina e, sem dispositivos artificiais que compensem os níveis de luminosidade em falta no interior, muitas pessoas experimentam os efeitos nefastos da perturbação afetiva sazonal.
Faz sentido tomar melatonina?
Sem avaliação prévia, não. O que precisamos está naquilo que comemos e bebemos e presente na nossa dieta. A vitamina D obtém-se com a exposição ao Sol. Tomar melatonina porque não consegue dormir é comparável a tomar drogas ou álcool: induzem um efeito que deveria ocorrer naturalmente.
O que fazer quando o parceiro é o disruptor do sono?
Após todos estes anos a treinar jogadores e atletas de alta competição, constatei que apesar das diferenças individuais, os humanos não foram programados para dormir acompanhados. Apreciamos a segurança, o sexo, a família e a companhia mas na hora de dormir queremos o nosso espaço e só desejamos o contacto com o outro depois de acordar! Desde pequenos que aprendemos a dormir na nossa cama e a ter os nossos hábitos individuais, quer seja em casa, no nosso quarto e na cama de solteiro, ou noutro sítio qualquer. Podemos partilhar a cama com outras pessoas por curtos períodos de tempo, mas se essa prática passar a ser regular há questões privadas que ficam totalmente expostas. De que lado dorme? A cama tem espaço para os dois? Prefere o lado da janela ou da porta? Aberta ou fechada (porta, janela, persiana)? Não vemos isto como um problema, mas é. No futuro, é possível que mudemos este hábito e possamos ganhar muito com isso.
Quais são as vantagens da sua abordagem?
Respeita o sono polifásico, por curtos períodos e mais frequentes, que se adapta à flexibilidade exigida pela vida atual. A ideia não é dormir aos bocados e acordar pior do que antes, nem adormecer no sofá a olhar para o ecrã, como faziam os nossos pais. Isso não é recuperação nenhuma e, em termos de desempenho, é para perdedores. O R90 permite dormir menos, melhor e sem perder tempo valioso, descansando 20 minutos, nas alturas certas, tanto durante o dia como em curtos períodos durante a noite.
O que ganham as empresas se a aplicarem?
O registo mental na gestão de recursos humanos tem de mudar, porque o modelo laboral também mudou com a cultura 24/7. Identificar os cronotipos dos colaboradores para otimizar o rendimento também conta: há quem funcione melhor à noite e quem seja madrugador. Todos ganham em ter um período de 20 minutos para não fazer nada, porque assim recuperam e produzem melhor. Isto deve ser claro, não apenas para quem dirige as empresas ou organizações, mas também para os departamentos de recursos humanos e os próprios colaboradores. Afinal, este é um assunto que interessa a toda a população.