Mais de sete meses após a confirmação do primeiro caso de Covid-19, o coronavírus continua a mostrar que a sua presença não é tão passageira como desejávamos e a ciência vai atualizando o que se sabe sobre o SARS-CoV-2.
O que diz a OMS?
A 27 de março, no mesmo mês em que declarou a Covid-19 como uma pandemia, a Organização Mundial da Saúde publicou um resumo sobre os modos de transmissão do vírus responsável pela Covid-19 e medidas de prevenção contra a doença.
Neste documento é mencionada a possibilidade de contágio através do contacto com superfícies ou objetos usados por pessoas infetadas, tal como termómetros e estetoscópios e é enfatizada a importância da limpeza e desinfeção dos espaços.
A 9 de julho, com o crescente número de estudos científicos publicados acerca deste vírus (a OMS revê cerca de 500 estudos diariamente), a organização atualizou este estudo de modo a conter as novas descobertas realizadas.
É descrita a presença e persistência do vírus SARS-CoV-2 e/ou do seu ARN (ácido ribonucleico) durante períodos que variam entre horas ou dias, dependendo do ambiente circundante e do tipo de superfície, sendo que a concentração é significativamente maior em instalações médicas onde foram tratados pacientes com Covid-19.
Assim sendo, um indivíduo que entre em contacto com uma destas superfícies e toque em seguida na boca, nariz ou olhos sem proceder à desinfeção das mãos pode ficar infetado.
No entanto e apesar da presença do vírus, não existem relatos de infeções por fómites (objetos que comportam e transmitem organismos infeciosos). Pessoas que estiveram em contacto com superfícies infetadas estiveram também grande parte das vezes em contacto próximo com pessoas portadoras do vírus, sendo impossível distinguir uma transmissão por gotículas de uma transmissão por fómites.
Apesar de não existirem dados que demonstrem que este tipo de transmissão acontece, a OMS considera que tal é possível visto que outros coronavírus e vírus respiratórios podem ser transmitidos desta maneira.
Então posso contrair o vírus pelo contacto com superfícies infetadas?
“Já foi encontrado ARN em superfícies próximas a casos confirmados de Covid-19 mas o vírus nunca mostrou ser infecioso”, explica à VISÃO Günter Kampf, especialista em higiene hospitalar e controlo de infeções.
Os dados do surto de SARS em 2002 e as pesquisas realizadas este ano em Gangelt, Alemanha, demonstraram que todos os vírus detetados em superfícies estavam inativos.
O especialista alemão, que tem vindo a desenvolver artigos acerca da persistência do SARVS-CoV-2, explicou o processo que conduziria a uma infeção: “Em primeiro lugar, é necessária uma fonte do vírus. Em segundo lugar, é necessária a concentração do vírus num pequeno volume aplicada na superfície. Quando uma pessoa espirra ou tosse, as gotículas são expelidas em várias direções e não caem numa pequena superfície definida.”, disse. “Quando tocamos numa superfície contraímos aproximadamente 1% dos vírus para as mãos. Quando tocamos numa noutra superfície, só uma fração dessa percentagem é que é libertada.”
Ou seja, mesmo que o vírus seja detetado após 1 dia, é muito pouco provável que seja infecioso.
O investigador do Instituto de Medicina Molecular, Miguel Castanho, considera também que seja muito improvável que ocorra este tipo de transmissão.
Explica que os estudos realizados em que foi encontrada a presença do vírus, foram realizados em laboratórios onde as condições são muito controladas: as superfícies são de material puro, a pH e luminosidade são constantes…
“Na esmagadora maioria das situações reais, tudo é mais complexo: as superfícies contêm materiais capazes de reagir com o vírus, oxidando-o, por exemplo; existem flutuações grandes de temperatura ao longo do dia e a exposição à luz pode ser igualmente favorável à ocorrência de reações químicas que alteram o vírus, inativando-o.”
A somar a estas condições, que levam à perda da eficácia do vírus, existe ainda um grande percurso que o vírus tem de percorrer até chegar às células suscetíveis de serem infetadas: da superfície para as mãos, das mãos para a cara e, da cara para as vias respiratórias.
Aponta ainda que a transmissão via superfície não é significativa face ao contágio direto (de pessoa para pessoa).
“Repare-se que, no contágio direto pessoa-pessoa, o vírus sai de um ambiente biológico dentro do corpo de uma pessoa (protegido da luz, a temperatura e pH constantes, em ambiente quimicamente ameno) para dentro do corpo da pessoa seguinte, passando pelo meio exterior apenas transitoriamente e envolto em gotículas exaladas diretamente do sistema respiratório.”
E tenho de proceder à limpeza dos produtos após a sua compra?
Para Miguel Castanho, não é necessário. “Ao contrário das bactérias ou fungos, que têm a capacidade de formar colónias em determinadas superfícies, os vírus não têm a capacidade de multiplicação ou capacidade de proteção/regeneração contra agressões externas”, explica. “Os vírus são quimicamente frágeis e ficam à mercê das oxidações, desidratações e degradações físicas impostas pelo meio ambiente.”
Os nossos hábitos de consumo mudaram e adquirir produtos online é uma prática cada vez mais comum. Kampf esclareceu à Forbes que receber produtos não deve causar apreensão, especialmente se estes percorreram grandes distâncias.
Para receber uma encomenda infetada seria necessário alguém depositar uma grande quantidade de partículas no pacote. Depois, o vírus teria que sobreviver às condições do transporte, que por vezes demora dias, fazendo com que, ao receber as encomendas, o vírus já esteja inativo. Mas há que contar também com quem as manipula até chegar ao consumidor final (nomeadamente quem faz a entrega).
Prevenir é melhor que remediar
Apesar das evidências científicas, o coronavírus mostrou já várias vezes ser matreiro. Por isso mesmo, a OMS recomenda a desinfeção das superfícies, nomeadamente se estas são frequentemente utilizadas, como mesas, maçanetas, interruptores…
Mas se limpar remove germes, lixo e impurezas, não mata germes nem vírus. Por isso é necessário aliar à limpeza, uma desinfeção.
A limpeza não deve ser feita a seco, mas sim com água e algum tipo de detergente, e a desinfeção em ambientes não hospitalares pode ser realizada com hipoclorito de sódio (presente nas lixívias domésticas) com uma concentração de 0,1% ou com álcool de concentração 70%-90%.