Moro num 8º andar e tenho usado as escadas em vez do elevador, para proteger os outros e para me proteger. Mas no outro dia, quando regressei de mais um dia de trabalho, numa UCI de um hospital de Lisboa, quase totalmente dedicada ao tratamento de doentes graves com Covid-19, os quase 150 degraus que subo todos os dias custaram mais, custaram muito mais…
Enquanto escalava os degraus, não me saía da cabeça a seguinte notícia: “Estado oferece 6,42 euros por hora a enfermeiros para reforçarem equipas na luta contra o Covid-19”. Senti um aperto no peito de angústia, injustiça, revolta e de quase ira… Comecei a dizer para mim mesmo, não quero sentir, nem pensar, não agora…
Eu e milhares como eu, que trabalham há 5, 10, 15 ou mais anos, continuamos a ganhar exatamente (nem mais, nem menos) o mesmo que colegas que acabaram agora o curso e que começaram agora a trabalhar, sendo que somos nós (os “mais velhos”) que os integramos. Há toda uma “escola” que só se aprende e que só se consegue ensinar na prática, com doentes, doenças, equipamento e situações verdadeiras. Não quero sentir, nem pensar, não agora…
Vejo enfermeiros com experiência de vários anos, muitos do SNS, que é uma grande escola, a partirem. Partem desiludidos com os decisores políticos e com um país que teima em maltratar uma classe que sempre fez tudo pelos seus concidadãos. Partem para locais onde lhes é oferecido um salário incomparavelmente melhor, respeito e reconhecimento pela sua competência, mérito e conhecimentos. Não quero sentir, nem pensar, não agora…
A vida tem destas coisas, há pouco mais de um ano, fomos apelidados de imorais, infratores e criminosos… Mas agora, pelos mesmos, somos chamados de profissionais de saúde importantíssimos, diferenciados, aqueles que podem dar resposta à pandemia. Somos aqueles que estão na linha da frente, aqueles que, mesmo querendo, não podem e não ficam em casa, um orgulho. Nós não estamos na linha da frente. Nós somos a única linha que existe, não se iludam! Não quero sentir, nem pensar, não agora…
Depois de sucessivos governos, de diferentes partidos nos terem enganado ano após ano… Agora somos a tropa de elite de um país. Fomos acusados por muitos, por exigirmos ser tratados como um grupo profissional altamente diferenciado (que agora parece que é inquestionavelmente reconhecido por todos, reconhecido pelos que já estiveram, os que estão e os que irão estar no poder) e que iríamos destruir uma das maiores vitórias de Abril, o nosso SNS. Nós, destruir o SNS? Nós, os da linha da frente? Nós, os profissionais dos 1000 euros?! Não quero sentir, nem pensar, não agora…
Os aplausos quando sinceros (e acredito profundamente que o são) são sempre bem-vindos. Mas, lembrem-se de nós na noite de Natal, na passagem de ano, na Páscoa, ou naquela noite fria, chuvosa e ventosa de inverno em que é emitido o alerta vermelho. Lembrem-se que nessa noite, nessas noites, há uns que vão deixar os seus e o conforto e a segurança das suas casas, para ir cuidar dos familiares dos outros. Não quero sentir, nem pensar, não agora…
Não é preciso fazer um grande esforço, basta ver. A verdade e os factos estão lá, cristalinos como a água. Nestes tempos incertos e cheios de receios, de doença e de morte. Quem é que não parou nem pode parar? Quem é que não pode fazer o seu trabalho em casa usando um computador? Profissionais de saúde (enfermeiros, médicos, auxiliares, técnicos, farmacêuticos e tantos outros), camionistas, bombeiros, forças de segurança, agricultores, pescadores, jornalistas, trabalhadores da recolha de lixo, da indústria, dos supermercados, das bombas de combustível, da limpeza, carteiros, administrativos, motoristas de transportes públicos e outros tantos (desculpem se me esqueci de alguém).
E se olharmos bem, percebemos que o país não pára, porque estes homens e mulheres, mesmo com receio, mesmo com família, mesmo com dificuldades, continuam a manter o país a funcionar. Contudo, são estes homens e mulheres que agora falei, que têm “bons” salários? São estes que recebem um ordenado digno e justo por manterem o país a funcionar antes, durante, e a assim o espero, após a pandemia? Não quero sentir, nem pensar, não agora…
Eu e outros como eu, não queremos ganham o dobro, nem mesmo receber “incentivos” ou “bónus” na altura da pandemia. Queremos sim, ter um salário justo, adequado e digno às funções imprescindíveis, diferenciadas e altamente complexas que desempenhamos na vida e na saúde dos portugueses. Não quero sentir, nem pensar, não agora…
Alguns irão responder, que quando se vai para esta profissão já se sabe ao que se vai. Louvados aqueles que têm o poder da adivinhação, pois graças a eles ficaremos todos protegidos de uma próxima pandemia ou crise mundial. Não quero sentir, nem pensar, não agora…
Espero e desejo que quando TODOS vencermos este vírus, não se esqueçam daqueles que sempre estiveram e continuarão a estar na linha da frente. E, que como nós não hesitámos em vos defender, mesmo com o risco para a nossa própria vida, também vocês usem toda a vossa força e influência e não hesitem em nos proteger quando for o tempo. Tempo esse que não vai ser agora, que não vai ser em breve. Mas, acreditem que esse tempo vai acabar por chegar. Não quero sentir, nem pensar, não agora…
Não quero sentir, nem pensar, não agora… Porque embora tenha, tenhamos, razões mais do que justas, não quero e não posso deixar que esta imensidão de sentimentos, pensamentos e razões mais do que válidas me obscureçam o coração e me toldem o pensamento. Não posso e não quero que todas as promessas desfeitas, todas as traições, todas as falsidades que ao longo destes 20 anos foram feitas a nós enfermeiros, influenciem aquilo que agora é o mais importante. Que é ajudar a salvar aqueles que precisam, para que possam regressar novamente para junto dos seus e para os seus trabalhos para erguermos novamente Portugal. Mas, em verdade vos digo, que tem que chegar e vai chegar uma hora, que não agora, que algo vai ter que mudar. E vai ter que mudar mesmo… tem que mudar! Mas agora não é esse tempo.
É graças aos profissionais de saúde, todos, sem excepção, e principalmente a estes e à sua dedicação e profissionalismo, que o SNS continua a dar resposta, mesmo nestes tempos difíceis.
Esta noite vou voltar a descer os quase 150 degraus para ir trabalhar. Saio e saímos todos os dias e noites para ir trabalhar, para que outros vivam. Saio e saímos todos os dias e noites para e pelo superior interesse da Nação, sempre…