Ambas as questões são de facto distintas, muito embora o isolamento e o desequilíbrio emocional de homens que não possuam uma especial vocação celibatária mas que se submetem a esse estilo de vida por amor ao sacerdócio, possam potenciar condições de fragilidade e tentações morais irreprimíveis na convivência próxima com o sexo oposto, mas que não justifica, em caso algum, a predação a crianças e adolescentes, a partir da sua posição de poder espiritual.
A verdade é que que este debate está aberto, a partir de agora, pelo chefe da IC. No fundo, o que diz Francisco é que o celibato obrigatório é uma medida temporária imposta pela igreja latina aos sacerdotes, e que pode ser revista a qualquer momento. Diz ainda que todos os sacerdotes católicos do rito oriental podem ser casados, para não falar já dos ortodoxos ou dos pastores protestantes em geral. O papa sublinha que até mesmo na cúria romana há um padre casado e com um filho. O nosso Ramalho Ortigão dizia: “O celibato é uma amputação nas forças e nas faculdades do homem.”
Depois temos o caso daquele grupo de pastores anglicanos que abandonou a Igreja de Inglaterra há uns anos devido a discordâncias, e que foram integrados na igreja romana como sacerdotes católicos, sendo casados e com família. Ora, tudo isto introduz um factor de injustiça e desigualdade, quer relativamente aos sacerdotes que abdicaram de constituir família para entrar no sacerdócio, quer em relação aos padres que abandonaram o mesmo para casar e mantêm a sua vocação pastoral.
O que Francisco vem dizer é muito claro: “Não há nenhuma contradição em que um padre se possa casar”. Do ponto de vista da teologia bíblica o celibato obrigatório é absurdo uma vez que, como testemunha o evangelista Marcos, o próprio apóstolo Pedro era casado: “E logo, saindo da sinagoga, foram à casa de Simão e de André com Tiago e João. E a sogra de Simão estava deitada com febre; e logo lhe falaram dela. Então, chegando-se a ela, tomou-a pela mão, e levantou-a; e imediatamente a febre a deixou, e servia-os” (1:29-31).
Mas também atendendo que S. Paulo afirma que o ministro de Evangelho deve ser casado: “Esta é uma palavra fiel: se alguém deseja o episcopado, excelente obra deseja. Convém, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de uma mulher, vigilante, sóbrio, honesto, hospitaleiro, apto para ensinar. Não dado ao vinho, não espancador, não cobiçoso de torpe ganância, mas moderado, não contencioso, não avarento. Que governe bem a sua própria casa, tendo seus filhos em sujeição, com toda a modéstia. Porque, se alguém não sabe governar a sua própria casa, terá cuidado da igreja de Deus?” (1 Timóteo 3:1-5)
O texto paulino, para além de listar uma série de predicados que devem ser visíveis nos candidatos ao múnus espiritual, diz, preto no branco, que é conveniente que seja casado e tenha filhos. Além disso, postula uma espécie de prova, quando sugere que constituir família é uma espécie de preparação para vir a governar bem o povo de Deus.
Do ponto de vista histórico é bom lembrar que mais de mil e quinhentos anos de fé cristã esta disciplina não existia, e que foi imposta já muito tardiamente, no concílio de Trento, no âmbito da chamada reforma católica, que pretendeu responder quer à reforma protestante, quer à situação moralmente calamitosa da igreja latina na época.
Salvaguardando aqueles que são inteiramente coerentes com o seu celibato e voto de castidade, diria que defender hoje o celibato obrigatório com unhas e dentes é defender algo antinatural, que facilita a hipocrisia religiosa e a vida dupla – virtudes públicas e vícios provados – como a história demonstra à saciedade. Já o escritor americano Samuel Johnson afirmava: “O casamento ocasiona múltiplas dores, mas o celibato não oferece nenhum prazer.”
Embora o papa não creia que a passagem a um modelo de celibato facultativo vá aumentar exponencialmente as novas vocações para o sacerdócio, gabo-lhe a coragem de enfrentar os lóbis católicos a quem tal não interessa, assim como o ressentimento de muitos dos sacerdotes para quem esta mudança já vem tarde.
Porém, para tornar facultativo o celibato dos sacerdotes católicos há que reformular as estruturas eclesiais, que foram pensadas para solteiros enquanto responsáveis das paróquias. Mas o papa parece estar preparado para essa nova frente de batalha.
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