Ficamos incomodados com o balanço trágico de desastres naturais como o forte sismo que abalou recentemente a região entre a Turquia e a Síria, de que resultaram perto de 50 mil mortos e 30 mil feridos. Todavia esquecemos os mais de 600 mil mortos decorrentes de catástrofes directamente provocadas pela mão humana. Falo de guerras esquecidas como a do Tigré, no norte da Etiópia.
O antigo presidente da Nigéria, Olusegun Obasanjo, agora na função de mediador da União Africana para o conflito, declarou ao Financial Times um balanço de “600 mil mortos em apenas dois anos, num território com seis milhões de habitantes”. E acrescentou, segundo a CNN, que “a partir de 2 de novembro do ano passado, dia em que foi assinado o acordo de paz entre o governo etíope e a Frente Popular de Libertação do Tigré, terão sido evitadas cerca de mil mortes por dia. São números impressionantes, tendo em conta as cifras registadas noutros conflitos – de acordo com estimativas das Nações Unidas, a guerra da Síria fez cerca de 350 mil mortos em dez anos e a guerra do Iémen fez 377 mil mortos em sete anos.”
Tratou-se de um conflito nacional iniciado em 2020, a partir de um contexto de elevadas tensões políticas iniciadas com a subida ao poder de Abyi Ahmed em 2018, que evoluiu para uma ofensiva desencadeada pelo exército contra os separatistas da Frente Popular de Libertação do Tigré. Os rebeldes retaliaram e estalou um conflito armado, que veio depois a ser potenciado por militares da Eritreia que entraram em cena no apoio ao governo.
Em consequência dos combates aquela região extremamente pobre que vivia duma agricultura de subsistência, entrou num período de fome generalizada pouco depois, estimando-se que “as taxas de desnutrição atingiram 40% em crianças menores de 5 anos e o nível de insegurança alimentar chegou a 89%
da população total, segundo dados do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (PAM).” O isolamento do território, a falta de comunicações, a dificuldade de acesso da ajuda humanitária e a falta de medicamentos básicos tornaram ainda mais dramática a situação daquelas populações.
O governo da Etiópia escondeu do mundo a tragédia humanitária resultante dos bombardeamentos, massacres recorrentes e provável intenção genocida, através da censura à imprensa e das restrições de acesso ao território de jornalistas estrangeiros. Organizações como a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch e a ONU, esta pela boca de António Guterres, manifestaram as suas preocupações ao longo do conflito que terminou num acordo de paz em finais de 2022.
Mas a perseguição religiosa agravou ainda mais o conflito. O Relatório da Fundação AIS 2020-2022 menciona que tanto o exército etíope como o da Eritreia atacaram o clero na região de Tigray, provocaram massacres de cristãos etíopes, violaram religiosas e destruíram mosteiros e edifícios da igreja. Em Novembro de 2020, em Aksum, de acordo com a ACN (UK) News: “Centenas de pessoas, incluindo padres e outros anciãos da Igreja, foram mortos numa série de ataques que culminaram num massacre na Igreja ortodoxa Maryam Tsiyon, em Aksum, onde se crê que esteja a Arca da Aliança.”
Também, a Amnistia Internacional confirmou o massacre ao recolher o testemunho de sobreviventes e testemunhas dos assassínios em massa: “Os militares eritreus em combate no estado de Tigray, na Etiópia, mataram sistematicamente centenas de civis desarmados na cidade do norte de Aksum no dia 28-29 de Novembro, abrindo fogo nas ruas e fazendo rusgas de casa em casa num massacre que pode constituir um crime contra a humanidade”. O patriarca Abune Mathias, líder da Igreja Ortodoxa Tewahedo da Etiópia, já tinha afirmado à CNN Internacional em Maio de 2021 que o governo etíope de braço dado aos eritreus queriam destruir o povo da região através do genocídio.
A Etiópia é uma nação antiquíssima e pretende encontrar as suas origens no rei Salomão. Surge no livro bíblico do Génesis, mas também na Ilíada e na Odisseia de Homero, depois denominada Reino de Axum, no século IV, e mais tarde Abissínia. Mas apesar das pretensas origens bíblicas, a Etiópia tem vivido nos últimos anos mais perto do inferno. Mas quase sem o mundo dar por isso.
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