Foi o poeta britânico Samuel T. Coleridge (1772-1834) que introduziu este conceito na sua obra Biographia Literaria, enquanto um verdadeiro pedido ao leitor de poesia para que abdicasse de uma atitude de descrença ou desconfiança em relação a tudo quanto nos cerca (ou se sente e pensa). O convite pedia assim a ousadia de todos se poderem entregar à imaginação, à fantasia, ao sonho, transportando-se muito mais para além do contexto de qualquer realidade meramente factual.
Hoje, vivemos inundados de realidade concreta, difundida no plano imediato graças às novas maravilhas tecnológicas que soubemos criar e que, pelo lado positivo, nos abriram portas de contacto e de informação inimagináveis até há poucas décadas. Mas há também o seu reverso, como a moderna aplicação que muitos jovens usam agora nos seus telemóveis: be real. Perante a invasão de imagens e notícias fake, pede-se agora que sejamos um pouco mais reais, sendo que para tal os utilizadores devem mostrar de forma verdadeira um pouco do seu quotidiano. Mas de que real falamos, senão de novo o que se resume ao mais concreto possível como, e cito alguns exemplos concretos, o prato de comida com alguns restos de pizza ou um vulto adolescente, embrulhado numa toalha de banho e touca no cabelo, devolvido pela imagem de um espelho embaciado pelo vapor de água quente?
De verdade, o padrão dominante das sociedades de hoje parece cada vez mais ligar-se em demasia ao que representa apenas o concreto, o vivido no aqui e agora, em que cada qual crê apenas depois de ver e, mesmo assim, tantas vezes fazendo dessa crença uma afirmação volátil e inconsequente sobre a construção de uma realidade que só ela vale e importa, e da qual emerge o poder inebriante da imagem que continua a interessar mostrar na espera da aprovação pública.
Be real surge como uma (outra) forma atual de afirmação de “ser no mundo”, conceito do filósofo Martin Heidegger (1889-1976), que implicava a necessidade de se “ser no outro”, mas que agora gira à volta de relações sociais à distância, possíveis pelo contacto fácil e imediato das redes sociais. Talvez por isso, ao invés de facilitar a aproximação verdadeira ou real das pessoas, ela as afaste através do reforço de defesas como a indiferença, a apatia, o desenvolvimento do pensamento concreto ou o bloqueio das representações afetivas.
Só que ser real será sempre, porventura, ser ou estar para além do momento, da bidimensionalidade da imagem, da exposição e partilha exclusiva da parte que se quer ou ousa revelar ao outro. Ser real é crer que tudo existe para além do concreto e que pode ser representado de formas tão diversas quanto infinitas no mundo interno de cada um: estou para além da presença física, existo por detrás das palavras que manifestamente digo (no seu conteúdo latente, ou no sentido das que não digo ou até são silêncio, mas ainda assim contêm significado), posso ser a imagem concreta que passa no ecrã mas, para além disso, possuo um interior não visível apenas pela sua mesma banalidade. Numa palavra, tenho fé.
Fé significa crença, confiança, reporta-se à capacidade de acreditar para além do que nos surge como concreto ou simplesmente é “real”. Consagra todos os mistérios de nós mesmos, dos outros, do mundo em geral, daquilo que, inquietando, não conseguimos representar, mas do qual podemos estar conscientes que existe e nos transcende. Ter fé em algo ou alguém tornou-se uma atitude complexa de defender, difícil de explicar e muito mais de aceitar. Mas a sua presença, enquanto construção psíquica do ser humano, é necessária para o equilíbrio psicossocial de cada um; contudo, para que seja possível é também indispensável que a criança tenha vivido um conjunto de boas experiências emocionais anteriores, em que acreditar no outro lhe confere a construção de um padrão de segurança básico, raiz da confiança em si e no mundo, para que, estável no que de concreto a rodeia, possa então desenvolver pela vida fora uma das mais importantes características do ser humano: a possibilidade de imaginar, sonhar, criar.
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