“O céu, a terra, o vento sossegado…
1As ondas, que se estendem pela areia…
Os peixes, que no mar o sono enfreia…
O nocturno silêncio repousado…”
(de um soneto de Luís Vaz de Camões).
E pelo mundo e pela vida estamos todos nós tecendo fios que ligam estes elementos, as experiências que se agrupam na memória que os filtra e depura, mas também guarda e traça caminhos de outrora desconhecidos e agora novos, descobertos num renovado prazer de ser e de existir. Ouvimos gritar “férias” ao ritmo do vento, o vento à volta de tudo, como em dias atlânticos que para muitos marcam o tempo de verão, do encontro maior com as ondas, a areia, e com o mar abrindo-se ao corpo destemido daquelas crianças e adolescentes que o desafiam e amam profundamente sem palavras ditas ou escritas, como peixes finalmente livres no seu momento de desaparecer, sustendo a respiração, para depois voltarem em saltos de gozo e alegria.
No Festival de Teatro de Mérida, assisto ao espetáculo de Ariadne, o Fio do Mito, em que sobe ao milenar palco romano a Companhia Rafaela Carrasco. Quase no fim, uma frase dita pelo narrador marca a sonoridade da noite quentíssima, de céu aberto e estrelado: recordar o passado é também uma maneira importante de se permanecer vivo. Como Ariadne, deusa aprisionada no labirinto de Creta, todos nós tecemos fios que procuram saídas, formas de conquistar a alegria, a liberdade, o amor. Queremos ser mar, saber que destino dar ao silêncio noturno, conhecer maneiras de vencer a solidão, estranho desígnio tão próprio e secreto da existência humana. Para isso, mais do que voltar atrás é não esquecer de como prosseguir.
A construção do nosso mundo interior e, com ele, o da sempre renovada leitura que fazemos do que nos cerca, encontra neste mito uma imensa expressão simbólica que não tem mal recordar. Todos sabemos de fios que também nos unem a pessoas, a objetos, locais ou memórias. Fios que nos elevam, sustêm a vida e nos prendem: ora dando segurança, ligando-nos a portos seguros, ora não nos deixando prosseguir como grilhetas que aprisionam a vida a tragédias tantas vezes menores quando vistas mais tarde, à distância da fuga finalmente conquistada.
É certo que há labirintos em que sucessivamente nos (re)encontramos, condição inerente à própria textura da vida, e de cuja saída só pelo amor descobrimos. É o amor que nos faz sofrer, diante da aridez da sua ausência ou do ímpeto (por vezes, louco) da sua incerta presença. O mais, são seus fios. Os mesmos que ainda nos ligam e desligam, prendendo-nos à força de querer prosseguir, conforme as mãos que os vão tecendo: “going on, being”.
Não recordo melhor e mais recente imagem desse amor de mão dada na mão do que a de um pai ucraniano segurando assim o filho adolescente, já morto, estendido no chão junto à paragem de autocarro que uma explosão destruiu em Kharkiv. Ou a mão da mãe que agarra a criança que dá os primeiros passos na sólida areia de uma certa maré vazia. Em todos, vejo caminho, sinto ligação, uma forma eterna de tudo quanto nos une além da presença de quem ainda está ali, ou já não. Também não sei quem disse ou escreveu que, se calhar, nunca há nada de novo, a não ser no fundo de cada memória própria. Talvez assim seja…
Por isso, que neste verão todos teçamos mais fios, que o tecido das nossas relações se torne ainda mais humano, neste tempo tão belo e tão livre que nos pode ser dado. E que seja essa a forma comum e futura de melhor habitarmos o mundo, mais perto de quem gostamos e dentro destes, claro, as nossas crianças, os nossos adolescentes em férias estendidos.
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