1 – O José Saramago teve um lampejo fantástico ‒ entre tantos, de teor diverso, nos seus romances ‒ ao defender e teorizar a criação de uma Declaração Universal de Deveres Humanos, de par com a dos Direitos ‒ em última análise necessária para que esta seja preservada e eficaz. E a sua como que institucionalização num documento (num processo que passou por Fundação Saramago, Universidade do México e ONU) deu-lhe consistência, força, universalidade.
Recordo um fragmento do que o nosso Nobel escreveu: “Foi-nos proposta uma Declaração Universal de Direitos Humanos, e com isso julgámos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. (…) Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.”
Trago isto à colação por crer que para lá do explícito nessa Declaração de Deveres, há uma ideia, um espírito, subjacente a tudo, que ilumina o documento e deve iluminar a nossa vida, em particular a intervenção cívica e política. De forma muito esquemática ou primária: todos os direitos pressupõem deveres, toda a liberdade de um cidadão tem como limite não violar ou impedir ilegitimamente a liberdade dos outros – e, princípio ético geral também aqui aplicável, os fins não justificam os meios.
Claro que há inúmeros casos de fronteira, conflitos de valores ou de interesses que nenhuma lei pode resolver. Para dar um exemplo, com que como jornalista e advogado inúmeras vezes me confrontei: a liberdade de imprensa, por um lado, o direito ao bom nome, honra e consideração, por outro. É indiscutível que, inclusive face ao ordenamento jurídico português, a primeira prevalece sobre o segundo. Numa abstrata igualdade, que pode não existir no concreto caso sub judice.
2 – Alonguei-me no que pretende ser apenas uma “introdução” a, ou contextualização de, episódios recentes da situação portuguesa. Por exemplo: o direito de manifestação na rua, implica o dever de não prejudicar desnecessária ou desproporcionalmente o direito de circulação dos cidadãos em geral. E para isso há legislação específica, que às vezes, aliás, não me parece estar a ser (bem) aplicada. Outro exemplo: o direito a haver discotecas e outras casas de diversão noturna, implica o dever de respeitar o sono e sossego dos outros, o seu “direito ao silêncio”.
Terceiro exemplo: o direito à greve implica o dever de os seus efeitos prejudicarem o menos possível os que não são responsáveis pela situação que a ela conduziu. Embora seja certo haver bastantes greves que para terem efeito afetam sempre muitos “inocentes”, aquele “dever” nunca pode ser esquecido. E é por isso que em todas as democracias há, e muito bem, a possibilidade de declaração de “serviços mínimos” – ser ela ou não adequada, é outra conversa.
Não vejo, assim, qualquer fundamento na afirmação de que a recente declaração, no caso dos professores, ponha em perigo ou em causa o direito à greve. Tivemos décadas de ditadura em que ela foi proibida. E estou certo que ninguém hoje responsável pelos destinos do País quer acabar ou sequer cercear esse direito. Aliás, fazer com que não haja um crescente descontentamento das pessoas face às greves, por prejuízos causados em setores fundamentais da sua vida – como saúde, transportes ou educação –, é uma forma de defender o princípio fundamental do respetivo direito, e não de o condenar. Condenam-no, sim, greves que não obedeçam a normas legais, ao equilíbrio e bom senso, causem prejuízos desproporcionais, etc…
Na minha última crónica, Defender a democracia, sustentei que atuais generalizadas atuações políticas e “comentarísticas”, sobre serem ineficazes, mesmo negativas, para os fins efetiva ou alegadamente visados, só ou sobretudo favoreciam o Chega. Sondagens realizadas a semana passada confirmaram-no. E esse partido fez mais um congresso a mostrar o que é e o que quer ser. Continuará a haver tantos que não aprendem a lição?
À MARGEM
Na morte de Luís Moita
Morreu um grande e sacrificado lutador contra o fascismo e a Guerra Colonial, um exemplo de católico (ex-padre), sempre fiel aos mais altos valores humanistas. Um homem bom, simpático e solidário, que conheci melhor, há muitos anos, na direção do MAD (Movimento para o Aprofundamento da Democracia). E na missa de corpo presente pareceu-me ver, numa das filas no meio da igreja cheia, alguém… E era, sozinho, sem segurança ou “séquito”: Marcelo Rebelo de Sousa. E vi depois, do outro da igreja, também só, Augusto Santos Silva. Senti-me contente – e isto quer dizer muito sobre um País em que, desgraçadamente, tudo parece estar debaixo de fogo…
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