1. Revela apenas uma evidência, mas é famosa a frase de Beaumarchais que aparece sob o logótipo, ao alto da primeira página, de Le Figaro: “Sans la liberté de blâmer, il n’est point d’éloge flatteur.” O que significa, não traduzindo à letra, que sem a liberdade de criticar ou culpar, o elogio não tem qualquer valor. Ora, se em Portugal desde o 25 de Abril há essa liberdade, face ao que hoje entre nós se passa ocorre-me uma outra versão da frase, de certo modo em sentido oposto: quando se critica ou ataca tudo, a crítica ou o ataque deixa de ter valor. Ou, se não valor, pelo menos peso e consistência.
Refiro-me às críticas ou aos ataques permanentes, e as mais das vezes veementes, a praticamente tudo o que vem do Governo. Quer por parte das várias oposições quer por parte de uma legião de comentadores. As primeiras obedecendo ao princípio, que parece ter-se como assente, de ser esse o seu papel, de ser assim que se faz boa e eficaz oposição. Os segundos parecendo partilhar tal entendimento e julgar ser assim que mostram a sua independência e o seu poder/contrapoder.
Em meu juízo estão, umas e outros, enganados. Digo-o, com toda a convicção. Com base, designadamente, numa longa e vivida experiência, da tirania salazarista à revolução libertadora, do PREC às várias fases da consolidação da democracia. E se o espaço o permitisse, para além de quaisquer teorias poderia exemplificá-lo.
Quem hoje chegue ao nosso país e avalie a sua situação com base apenas no que leia, ouça, veja, na generalidade da imprensa escrita, das rádios e televisões, atente nas posições dos vários partidos (com exceção do que está no poder…), concluirá que isto é uma desgraça pegada, estamos na cauda de tudo, não há nada que se salve em Portugal – agora nem o sol, porque tem chovido imenso… E se porventura alguém referir, em contrário, alguns factos, números, índices, decerto não será levado a sério; como o não será quem, por exemplo, lembrar que o desemprego, então considerado o nosso mais grave problema, há meia dúzia de anos era de dois dígitos, tendo chegado a ultrapassar os 17%, e hoje não chega aos 7%.
Assim vamos. E a que propósito vem isto? Vem para sublinhar que se por um lado o Governo tem falhado em vários aspetos, em particular na escolha de membros para o integrar, por outro se têm acentuado certos erros, certas formas de fazer política e comentário político, ou dito político, bem assim certo jornalismo, ou chamado jornalismo. Que em minha (claro que contestável) opinião não se distingue pela inteligência das coisas, por uma independência/coerência e justeza dos juízos, pelos melhores princípios deontológicos das respetivas atividades, tão-pouco pela eficácia dos objetivos visados.
Porque acredito que a grande maioria dos que têm tais práticas não visa fins condenáveis; mas por igual acredito que tais comportamentos e a situação por eles criada só favorecem o florescimento de extremismos antidemocráticos: se hoje houvesse eleições, ou se as houver mantendo-se o antes descrito ou sugerido, quem mais ganhará com isso é o Chega. Ora, impõe-se defender a democracia e aprender lições com, por exemplo, o que aconteceu no Brasil (ler À margem).
2. Não sendo do mais expressivo, o que ocorreu com o questionário para eventuais futuros membros do Governo merece uma nota. Com raras exceções, esse conjunto de 36 perguntas foi classificado como uma mera manobra de diversão ou algo que nada acrescenta. Ora, sendo óbvio que nenhum papel pode resolver o mais importante, que é escolher para o Governo pessoas capazes, competentes, política e eticamente respeitáveis, ele tem duas vantagens: 1) Põe aos “candidatos” uma série de questões que de outra forma nunca seriam postas, como decerto nunca foram, ao contrário do que se disse; 2) Se nos recentes lamentáveis casos foi muito discutido se o chefe de Governo ou o ministro X ou Y tinha conhecimento de certa situação, com o questionário fica-se com uma certeza a tal respeito. O “candidato” pode mentir? Claro, mas aí a responsabilidade é inteiramente sua. E uma alteração mínima ao art.º 348 do Código Penal fará com que tal constitua crime de falsas declarações.
À MARGEM
Brasil, Brasil, Brasil
Era sobre o que uma vez mais me apetecia escrever (e sobre os professores, as greves, o ministro João Costa – que foi um excelente secretário de Estado –, a educação em Portugal, o que exigiria outro espaço). Não o fazendo, para não “repetir”, digo só que foi uma tentativa de golpe de Estado o que arrancou com o vandalismo dos ataques à Praça dos Três Poderes, a depredação/destruição das suas sedes. Ou seja, dos seus símbolos: o que se queria destruir não eram as cadeiras mas quem nelas se sentava e a democracia que representavam. Para já, os golpistas foram derrotados, a democracia ficou mais forte e o governo de Lula mais viável. O responsável máximo, político e moral, pelo golpe, chama-se Jair Bolsonaro – e impõe-se, em toda a parte, incluindo Portugal, tirar as lições do que conduziu ao que aconteceu.
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