Polémico e universal, o mais famoso livro de Joseph Conrad transporta o leitor para o coração de África e trata de temas particularmente sensíveis no mundo atual. O colonialismo, a raça, a par com a dicotomia bem/mal, civilização/mundo primitivo que atravessou quase toda a obra do escritor. “É um Mal com maiúscula que vem do teste aos limites do indivíduo, do confronto com o que o rodeia, mas também um Mal interior, que corrói e inspirou Francis Ford Coppola e John Milius a escrever o argumento do filme Apocalypse Now, deslocando a ação para o Vietname do século XX.”
Coppola não foi o único a sentir-se inspirado pela novela. Orson Welles tentou adaptá-la ao cinema, mas o projeto não se cumpriu. Facto é que desde que foi publicado, em 1902, O Coração das Trevas foi inspirador para gente como André Gide, Graham Greene, Virginia Woolf, Jorge Luís Borges, Hemingway, T. S. Eliot e têm sido muitos os realizadores a aproximarem-se desta história de imersão no desconhecido que belisca, no entanto, alguns autores pós-colonialistas. Caso do Nobel nigeriano Chinua Achebe (1930-2013), considerado o pai da literatura moderna africana que acusou Conrad de ser “um completo racista”. Não falta quem refute a acusação, alegando que em O Coração das Trevas, Conrad faz, sim, a denúncia da mentira civilizacional criada pelo colonialismo.
O Mal de Conrad nasce da “fascinação do abominável”, como lhe chamou Marlow, personagem mítica criada pelo escritor. Escreve Aníbal Fernandes, o tradutor, na introdução à versão portuguesa que editamos: “O Mal – este Mal de Conrad – sempre indefinido e tão vasto como o universo físico, localizado na Natureza unfathomable – ‘impenetrável’, cenário de eleição para aquele confronto e sede das trevas da civilização humana.” É um mal menos religioso na aceção católica do termo, do que tema literário ou filosófico, que implica a ideia de inocência e obscurantismo e que pode ser materializado na selva impenetrável, o coração de África, o coração das trevas: “Um cheiro a imbecil rapacidade bafejava tudo como um cheiro a cadáver. Júpiter nos valha! Nunca na vida eu vira coisa tão irreal. E à volta a silenciosa selva, que apertava aquele pedaço de terra nua, parecia-me enorme e tão impossível de vencer como o mal ou a verdade, que estava à espera, com paciência, do fim daquela invasão fantástica.”
Esta é a voz do espanto de Charles Marlow, “marinheiro, sim, mas vagabundo também”, o narrador, personagem preferida de Conrad, navegador que andou por “todos os mares”, “um homem de rosto cavado, tez lívida e tronco hirto, com ar ascético de ídolo”. É um anti-herói, espécie de consciência do próprio Conrad, que o criou para reviver a sua experiência de viagem, anos antes, quando em pleno rio Congo se viu forçado a substituir o comandante do navio que ficou doente. Era então um jovem marinheiro ao serviço do império britânico numa jornada em África.
O Coração das Trevas é o relato dessa viagem transformadora. Terminada em 1899, a novela foi publicada em três partes para celebrar o número mil da Blackood’s Magazine, uma revista literária que teve a última edição em 1980. Arranca no rio Tamisa, a bordo da chalupa de recreio Nelley. Nela, quatro homens ouvem as histórias que o comandante viveu muito longe dali, quando andava atrás de um dos seus fascínios, as partes em branco dos mapas. Os polos, mas também zonas do continente africano, espaços que para ele eram de mistério e, por isso, uma atração irresistível. Foi assim que chegou ao Congo.
“Deixara de ser espaço em branco, de maravilhoso mistério – nódoa branca feita para um rapaz sonhar glórias. Transformara-se em lugar de trevas. De especial tinha um rio. Enormíssimo rio que podíamos ver no mapa e parecia uma cobra imensa desenrolada, com a cabeça no mar e o corpo em torcido repouso numa região ampla, rabo a perder-se nas profundezas do território. Quando eu olhei para esse mapa na montra de uma loja fascinou-me como a serpente que fascina um pássaro – um passarinho pateta. Nessa altura ocorreu-me que uma importante empresa estava lá instalada. Companhia para o tráfico comercial do rio. Vamos a isto!, pensei comigo mesmo, que eles não podem fazer o tráfico sem um barco qualquer – sem barcos a vapor! – numa tão grande extensão de água-doce.”
Chegou ao centro do comércio de marfim que descobriu dominado por um homem que ganhara o estatuto de lenda: o Sr. Kurtz. Ele não era um simples chefe de posto, mas alguém que conseguira penetrar onde os outros homens não se atreviam, e para Marlow, Kurtz passou a ser obsessão. Para entender o enigma ele estava disposto a entrar no mais hostil dos mundos, a selva densa de que Kurtz era uma espécie de metáfora: a do selvagem. Ele entrou na selva densa, perdeu-se nela, negou a civilização. Será? A missão de Marlow passa a ser encontrá-lo. Seguindo as águas do rio Congo, persegue o homem, o mito, enquanto se confronta com os seus próprios fantasmas e interroga o mundo em que vive.
Ao fazer Marlow falar, Conrad cultiva um estilo depurado. O inglês com que escreve passa a ser modelo para a narrativa de aventuras, mas mais do que isso, para descrever o negrume humano. O horror, como o descreveria.