De uma forma demasiado simplificada, este é um livro construído à volta do sequestro de um cão e consta que foi um dos negócios mais rentáveis na história da editora que o publicou, a McMillan Company. O biógrafo de Jack London, Earle Labor, conta que, ao perceber que aquela não era uma simples narrativa sobre animais, o editor ofereceu a London dois mil dólares pela totalidade de direitos da obra e fez uma edição de luxo acompanhada por uma gigantesca campanha promocional. “O Apelo da Selva foi um best-seller imediato, recebido entusiasticamente tanto pela crítica quanto pelos leitores. Permaneceu em impressão desde o primeiro dia em que foi publicado e apareceu em inúmeras edições nos Estados Unidos e no estrangeiro”, escreve Labor em Jack London, An American Life (Farrar, Strauss and Giroux, 2013), a celebrada biografia do escritor que viu a sua vida mudar após esse contrato, apesar de não ter recebido nem mais um centavo de direitos. Ganhou, no entanto, o reconhecimento da crítica e dos leitores.
Era para ser um conto, mas depressa ganhou outro fôlego. Nasceu do amor de London pelos animais, especialmente por cães, que se aprofundou durante o tempo em que viveu em Klondike, na fronteira do Canadá com o Alasca, quando decidiu embarcar na corrida ao ouro, a segunda do XIX na América, e se deparou com a espécie de lobos daquela paisagem agreste em contraste com os cães da sua Califórnia natal. Ali, eram músculo para servir os homens ou animais selvagens num habitat que também remete o homem ao seu lado mais primitivo.
É esse o cenário do romance. Buck, o protagonista do livro, um cão criado no sol da Califórnia, foi levado para o gelo ártico e a sua história passa a ser de sobrevivência, onde mata para não ser morto, e naquele universo primitivo, uma reflexão sobre a própria identidade. “Há um êxtase que marca o apogeu da vida, para além do qual a vida não se pode elevar mais. E tal é o paradoxo da existência, que esse êxtase surge quando se está mais vivo e surge sob a forma do completo esquecimento da própria vida. Esse êxtase, esse esquecimento de si, atinge o artista, surpreendido, em transe, num lençol de chamas; atinge o soldado, enlouquecido pela guerra, que numa batalha perdida recusa tréguas; e atingiu Buck, ao conduzir a matilha, soltando o antigo brado do lobo, perseguindo o alimento vivo que corria velozmente à sua frente, sob o luar. Estava a explorar o que de mais profundo havia na sua natureza e, para além de si mesmo, recuava até às entranhas do próprio tempo.”
O livro é uma alegoria que explora a capacidade de adaptação e a relação entre a natureza e a individualidade, e como esta inevitavelmente se molda, convocando o que há de mais feroz e dilacerante, num conflito que o escritor recria de forma virtuosa. O narrador conhece tudo o que se passa na mente de Buck e partilha essa intimidade com o leitor criando-se uma cumplicidade como só a grande literatura consegue e que, tratando-se de London, adepto da chamada escrita objetiva, até para o próprio foi surpreendente.