É praticamente unânime que Vladimir Putin foi optimista nesta invasão à Ucrânia. De assuntos militares percebo pouco, pelo que nem vou por aí. O que também vem a calhar: é que o desfecho militar é irrelevante, para a derrota já certa da Rússia.
O presidente russo subestimou demasiadas coisas: a resistência ucraniana (que só será mais reforçada com cada vítima inocente); a assertividade das sanções económicas; e a união admirável dos países europeus e dos Estados Unidos. Com tantos erros de cálculo, era difícil que o resultado fosse bom.
Com todo o respeito pela Ucrânia e pelos seus cidadãos, o que ficará para a História é a queda do regime de Putin, independentemente da situação das tropas no terreno.
Vamos por partes.
As sanções internacionais começaram tímidas mas conheceram uma escalada agressiva e muito mais rápida que o caminho dos tanques russos na estrada para Kiev. Se inicialmente havia de parte da União Europeia a expectativa de que algumas sanções económicas seriam suficientes para fazer Putin repensar, rapidamente a realidade se impôs. À medida que o bluff da Rússia se transformou em acções generosamente banhadas a paranóia, rapidamente a Europa subiu o tom e sacou do arsenal de medidas económicas. Se Putin contava com uma divisão da Europa (e com o apoio da China, que não chegou), a resposta que teve foi avassaladora: compra de armas para entrega às forças ucranianas; congelamento de activos do Presidente e da sua entourage mais alargada; a alva elefantização do Nordstream 2, que para já ficará a ganhar pó; exclusão de quaisquer aeronaves russas do espaço aéreo europeu; fecho de vários portos a embarcações russas; retirada de vários bancos-chave russos do sistema Swift; congelamento da movimentação de activos no arsenal do banco central da Rússia, limitando a sua capacidade de responder e defender a economia e o rublo. No espaço de uma semana, é muito e deve ser assinalado.
Mais do que esta ou aquela medida – todas têm pesos diferentes e algumas ampliam-se mutuamente – é o efeito concertado que vai rebentar com a economia russa. Basta ver as filas para levantar dinheiro nas cidades russas: não há maior sinal de pânico financeiro e de desconfiança do que uma corrida aos bancos. E isto sucede numa economia em que as instituições não dispõem de todas as armas para poder combater o fenómeno.
Por falar em desconfiança, esta é uma das palavras-chave, sendo isolamento a segunda.
Quando o clube alemão de futebol Schalke 04 retira das suas camisolas o patrocínio da gigante energética Gazprom, o que se está a dizer, simbolicamente, é que deixou de ser admissível fazer negócios com a Rússia. Pura e simplesmente. Quando Lavrov fica a falar sozinho enquanto debita a sua alucinada propaganda, é um fosso que se cava. É um repúdio social generalizado que faz com que qualquer entidade que, a partir daqui, queira estreitar relações com a Rússia, será escrutinada e muito provavelmente penalizada. A indignação é tal que chegámos onde não se esperava: nem todo o dinheiro do mundo consegue comprar as consciências de todos os cidadãos.
A desconfiança vem da seguinte pergunta: que grande empresa vai fazer contratos ou grandes investimentos num país que, de um momento para o outro, pode deitar tudo a perder com uma deriva bélica contrária não apenas ao direito internacional mas até à própria lógica de custo/benefício?
O que isto significa é que caiu por terra, numa semana, um movimento de décadas de interligação empresarial entre a Rússia e empresas estrangeiras, nomeadamente europeias. Com Putin e o seu regime à frente dos destinos da Rússia, isso acabou. Não só é inaceitável pelas opiniões públicas e consumidores ocidentais como é mau negócio: tornou-se, simplesmente, demasiado arriscado.
Daqui vem a segunda palavra, o isolamento. A Rússia é um país gigantesco mas essa dimensão não se reflecte em poderio económico. Aliás, o país tem mais território do que capacidade para o gerir. E ao invés de apostar numa diversificação e modernização económica, deixou-se ficar no que era mais fácil e no que a terra dá: gás e petróleo. Num momento em que os grandes blocos económicos do ocidente fazem o movimento para a transição energética, a Rússia nunca tentou sequer apanhar esse comboio. Da mesma forma, não apostou no conhecimento e deixou acentuar as desigualdades sociais. O mercado interno não é, de todo, suficiente para suportar um país com as ambições da Rússia, sobretudo um mercado interno pobre e que ficará mais pobre a cada dia que passa. Mas será com ele, em grande medida, que a Rússia terá de se contentar para se governar. A China é muito grande e poderá ajudar; mas a China está longe de querer assumir-se totalmente desse lado do muro, se isso significar ter de virar costas à globalização que fez dela a potência económica dominante em que se transformou.
Esse isolamento tem outra consequência grave e difícil de medir. Ao perder parcerias e joint-ventures com outros países, perde-se não só mercado e dinheiro, perde-se conhecimento e inovação. E no século XXI, uma economia sem conhecimento e sem inovação é uma economia condenada.
Com esta tresloucada invasão da Ucrânia, movida por uma testosterona de macho alfa que não só é ridícula como inútil, Putin assinou o fim do seu regime. Vai cair por dentro, leve meses ou leve anos, afogado na enxurrada de miséria que trouxe a um povo que também quer viver em paz, com emprego, com conforto, com comida e, se possível, com bons smartphones.
Neste novo normal, ninguém vai ficar contente, nem as elites nem o povo. Os primeiros não gostarão de ser apenas ricos, em vez de ultra-ricos, e certamente não lhe perdoarão que não lhes aceitem as reservas para jantar nos restaurantes de Paris ou Monte Carlo ou que os seus filhos não possam estudar nas escolas mais chiques do ocidente. O povo, esse, está embriagado de propaganda e até pode acreditar na patranha de culpar os poderosos ucranianos por todos os seus males: mas certamente não gostará de viver pior, de voltar a um dia a dia que achava já ter deixado para trás.
Putin pode ganhar a guerra e destruir a Ucrânia. É até bastante provável que isso aconteça. Essa vitória pessoal certamente agradar-lhe-á, eventualmente para poder entrar a cavalo em Kiev, de tronco nu. Mas a Rússia pagará colectivamente um preço muito elevado pela satisfação do seu ego.
Putin pode ganhar. Mas a Rússia, aconteça o que acontecer nas trincheiras da Ucrânia, já perdeu.