A Primeira Liga portuguesa terminou domingo, graças a um recta final de 10 jogos sem público. O futebol jogado após o regresso pareceu-lhe menos intenso e menos espectacular? Provavelmente é impressão sua. A EXAME de agosto trará um longo trabalho sobre o impacto da pandemia na indústria do futebol, mas quisemos olhar também para aquilo que se passa no relvado. Este é um dos textos que poderá ler na revista desse mês.
José Boto, ex-diretor do departamento de scouting do Benfica, considera que “é uma falsa questão”. Hoje no Shakhtar Donetsk, Boto acha que o problema está nos nossos olhos. “Aquilo que esta retoma mostra é que muita gente não consegue ver futebol sem público e, portanto, acha que falta alguma coisa. Ouço muitas vezes os comentadores dizer que falta intensidade, mas o que falta é o barulho do público. Os dados que temos de GPS mostram que não há menos intensidade”, diz à EXAME.
Carlos Freitas admite que possa ter existido um período de recuperação da forma física. Em documentos internos, a própria Liga avisava que uma interrupção superior a quatro semanas teria impacto suficiente para afetar a competitividade dos jogos. Normalmente, não é no início da época que se joga o melhor futebol. “Independentemente de alguns jogadores terem conseguido trabalhar no jardim de casa, a esmagadora maioria dos profissionais não tem jardim nem ginásio em casa”, lembra o diretor desportivo do Vitória de Guimarães.
O que nos dizem os números?
Um jogo mais cauteloso
A olho nu, o jogo talvez pareça menos intenso. Mas os dados não confirmam isso. Uma análise feita aos jogos da Bundesliga – a primeira grande liga a regressar – mostra que os jogadores fizeram mais sprints e que as equipas correram mais. O que não significa que o jogo esteja totalmente igual. Os mesmos dados mostravam mais passes, mas menos dribles. Um jogo mais cauteloso, menos arriscado, talvez com menos incentivos para impressionar as cadeiras vazias da bancada.
Simon Gleave, responsável por análise desportiva no Gracenote, conclui que “o impulso para entreter diminui se não há ninguém a responder”, escreve o NYT. “Desde o regresso, os jogos têm tido mais 16 passes do que o normal, um sinal, para Gleave, de que os jogadores, sub-conscientemente ou não, estão “a escolher passar a bola em vez de tentar jogadas que colocariam os fãs de pé””.
E em Portugal? Também parece haver efeitos. Os dados recolhidos e analisados pela GoalPoint para as cinco jornadas após o recomeço sugerem que o jogo está mais lento e menos direto. Houve uma quebra de 11% na velocidade média por cada posse de bola, de 1,66 metros verticais por segundo para 1,47. Temos mais 26 passes por jogo (aumento de 4%), mas aqueles que são feitos para o último terço tiveram um recuo de 4 por cento. As tentativas de drible nessa zona do campo também recuaram de 16,8 para 15,4 por jogo.
Os mesmos dados da GoalPoint revelam que a média de faltas disparou de 31,6 para 35,5 (mais 12%), o que está a refletir-se num número muito mais elevado de penáltis, passando de 0,34 por jogo para 0,51. Essa subida é um dos principais fatores a contribuir para o aumento de 9% no número total de golos. O outro são as concretizações fora da grande área, que saltaram de 0,3 para 0,5/jogo.
Num regresso repentino à alta competição depois de tanto tempo de paragem, seria de esperar mais problemas com lesões, mas isso não parece estar a verificar-se, segundo os dados disponíveis: o número de substituições por lesões afundou de 0,41 para 0,27 por jogo, mesmo com a possibilidade de duas substituições extras.
Fator casa ainda existe?
Jogar sem público é também uma boa oportunidade para testar o impacto que os adeptos têm no desempenho das equipas. A mesma análise da liga alemã, noticiada pelo New York Times, revela uma influência significativa. Os clubes que jogavam em casa ganharam apenas 33% dos jogos com os estádios vazios, em comparação com 43% com o apoio dos adeptos. As equipas que jogam em casa marcaram menos golos do que antes, remataram menos à baliza e, nas vezes que o fizeram, foram menos perigosas. Menos cruzamentos, menos cantos e menos dribles tentados. Os guarda-redes parecem ter piorado: a percentagem de remates defendidos diminuiu para quem joga em casa e aumentou para quem joga fora.
“Para todos os efeitos, o desempenho da equipa da casa na Bundesliga colapsou perante as bancadas vazias”, pode ler-se no artigo. O analista Lukas Keppler, da Impect, fala até de uma “vantagem negativa de jogar em casa”. Por incrível que pareça, parecia mais fácil jogar fora.
“Existem equipas que funcionam muito com o 12º jogador e têm mais dificuldades sem público, porque têm um jogo mais motivacional, mas em equipas com um modelo de jogo definido, como aqui no Shakhtar, nota-se menos”, aponta José Boto.
Contudo, a diminuição do “factor casa” não se observou em Portugal, mostra a análise de dados feita pelo zerozero. Na época 2018/2019, 59% dos jogos que não resultaram em empates deram vitórias da equipa da casa. Até à 24ª jornada de 2019/2020, quando a competição foi interrompida, essa percentagem tinha caído para 54% e, curiosamente, até aumenta para 56% entre a 25ª e a 32ª jornadas, período sem público no estádio.
Portugal não está sozinho nesta tendência. Na primeira divisão inglesa e italiana observou-se um movimento semelhante, como mostra este artigo da Economist.
Regressando à Bundesliga, talvez menos pressionados por milhares de pessoas aos gritos, os árbitros, pelos vistos, perderam alguma da tendência “caseira”. A equipa da casa passou a ter mais faltas contra marcadas. Houve também um aumento de cartões amarelos. Há mais faltas para os dois lados.
O mesmo artigo da Economist mostra quão transversal é essa tendência em todas as ligas analisadas pela revista. Com mais de 1500 jogos analisados, a diferença pré/pós-Covid-19 são claras. “Os árbitros parecem ter deixado de ser parciais. Embora os padrões variem muito entre ligas, a percentagem de cartões dados às equipas da casa aumentou de 46% antes do lockdown para 50% depois.”
A forma como o futebol é jogado (e arbitrado) é apenas uma das dimensões do desporto revolucionadas pela pandemia. Na EXAME de agosto poderá conhecer como é que a indústria está a ser virada de cabeça para baixo.