O têxtil e a moda, que empregam mais de 430 milhões de pessoas e faturam cerca de 1,5 biliões de dólares em todo o mundo, ajudam a satisfazer uma das necessidades básicas do ser humano. Mas os desperdícios que geram e a pegada ambiental que deixam no processo de fabrico colocam também a indústria na mira da agenda da proteção do ambiente e do combate às alterações climáticas.
A EXAME falou com James Stewart, um especialista na filosofia de gestão lean manufacturing –apostada em reduzir desperdícios, acelerar tempos de produção e reduzir custos nas organizações – sobre as transformações que a indústria da moda e do têxtil têm de fazer a nível mundial para se tornarem mais sustentáveis através da inovação e do desenvolvimento e da reestruturação de cadeias de fornecimento, até dar o salto para a indústria 4.0.
Na conversa, aquando da sua participação na conferência Reset Fashion organizada pelo Kaizen Institute, o especialista, que já passou por empresas como Nokia e Burberry, defende que o primeiro passo a seguir é parar de comprar mais do que é preciso, para assim poder alocar as poupanças financeiras à transformação que é necessário fazer, incluindo na melhoria das condições dos trabalhadores.
Enquanto especialista em transformação lean já trabalhou nas indústrias das telecomunicações e da moda, nomeadamente na Nokia e na Burberry. Encontra paralelismos entre elas?
Apesar de serem diferentes e operarem a velocidades distintas, há alguns paralelos. A moda evolui muito rápido, da mesma forma que no caso das telecomunicações houve nova tecnologia a chegar muito rapidamente ao mercado. Mas aqui é que está o problema: enquanto a moda é completamente fragmentada, a Nokia, por exemplo, criou uma cadeia de fornecimento do zero, já com um pensamento em mente. A produção era local, não era toda feita na China, e era preciso fornecer a tecnologia num curto espaço de tempo. Ora, o cliente quer produtos a chegar rapidamente, mas o sistema de negócio em que eles [moda] operam é muito lento. Cria problemas como a sobreprodução, levando-os a fabricarem muito mais – três vezes mais – do que necessitam.
É esse o maior desafio desta indústria?
Se imaginar que essa sobreprodução é generalizada, no melhor dos casos 30% é vendido ao preço normal e o resto a desconto, ou então acaba num aterro. Significa produzir três vezes mais em toda a cadeia, desde o algodão, etc., com impacto gigantesco no planeta. Outro problema é a obsessão sobre as margens. O custo de produção é provavelmente 10% do preço ao consumidor, no pronto a vestir pode ser 30%, com margens de 60% a 70% que podem chegar a 90% no luxo. Mesmo assim estão obcecados em tentar tirar o máximo de dinheiro da cadeia de fornecimento, o que empurra a produção para a Ásia, para o Bangladesh ou o Vietname, onde as pessoas são pagas com salários muito baixos e provavelmente não trabalham nas melhores condições.
Como é que se sai desse cenário com soluções que sejam realistas?
Temos de mudar o pensamento e de envolver toda a indústria. E isso não custa muito dinheiro. Quando trabalhava na Burberry, as pessoas na linha de produção tinham consciência do problema, estavam obrigadas a produzir mais e mais produto, mais depressa e mais barato. Só que o problema não está ao nível das fábricas – e os líderes empresariais precisam de perceber isso. O problema na moda são os tempos longos desde a conceção até que o produto chega às lojas, de 9 a 12 meses. Compram coisas quase um ano antes de as venderem e não fazem ideia do que o cliente vai comprar, o que causa este problema [de sobreprodução]. Produzem na Ásia, quando os maiores mercados são a Europa e a América e depois enviam os artigos de barco. Visto de fora, pelos olhos Kaizen [ metodologia de melhoria contínua dos processos nas organizações ], isto não faz nenhum sentido.
Talvez numa perspetiva de custo… Já em termos de sustentabilidade…
Toda a indústria não faz sentido. Ninguém está a ganhar, o planeta está a sofrer, as pessoas que estão a ser exploradas nas fábricas estão a sofrer e o negócio não é rentável.
Quem tem mais culpa neste cartório: a história dessa indústria, ou a globalização?
A Kaizen, ou lean, é muito bem conhecida na indústria automóvel, foi adotada pelas telecom e pela eletrónica, por empresas como a Apple ou a Amazon. Embora com diferentes níveis de maturidade da automação, as empresas reconhecem que há outra forma de fazer as coisas e estão nesse caminho. Mas na indústria têxtil e da moda… Uso sempre o exemplo do Reino Unido, que foi o berço da Revolução Industrial. Criámos o problema [James é britânico]. E eu culpo-me por isso [risos].
Que grandes mudanças à indústria traria esse novo paradigma que defende?
Nas pessoas, que passariam a ser valorizadas nas fábricas…
Menos pessoas…
Não necessariamente. Para ser honesto, o elefante na sala é que se está a produzir 60% mais do que se precisa. Com essa sobreprodução, temos mais pessoas do que precisamos? Não sei. É uma boa pergunta, mas não sei a resposta.
Mas terá de haver gente mais especializada e com outras competências.
Talvez seja preciso o mesmo número de pessoas, mas, provavelmente, se a indústria da moda for mais lucrativa, pode investir em novas tecnologias. Talvez essas pessoas não sejam precisas na produção e possamos usá-las em inovação – a propósito, não acredito que a indústria da moda seja assim tão inovadora. Nas indústrias tecnológicas o investimento em investigação e desenvolvimento [R&D] é significativo, que é o que impulsiona as sociedades. Há muita inovação a acontecer na energia, nas tecnologias, no hidrogénio. Não vi esse nível de inovação na indústria da moda. Algumas coisas acontecem em startups, mas não vejo as grandes marcas do setor a liderarem grandes impulsos de inovação como as tecnológicas.
Algumas já estarão a começar a produzir localmente e de forma personalizada, como propõe a indústria 4.0.
Acredito que a moda ainda não saiu da indústria 1.0 [ primeira revolução industrial ] [risos]. Estamos a falar da indústria 4.0, onde digitalizamos. Quando se começa a reduzir os tempos de entrega, se aumenta a velocidade do fluxo de produção e se fabrica localmente e com customização massiva mais do que com produção em massa, precisamos de ferramentas digitais.
Há casos em que é preciso saltar do 1.0 para o 4.0 diretamente? É essa a única forma?
Esse é o grande mito: o digital não vai resolver problemas. Dar só esse salto para o 4.0 não vai mudar o problema, que é estrutural em muitos negócios e em toda a indústria. Primeiro é preciso reestruturar, fazer algo no físico para poder tirar partido do digital. Em algumas áreas, como o design, podemos provavelmente dar esse salto com bastante rapidez, reduzir o desperdício em amostras, ter produtos mais próximos do que o consumidor quer. Na cadeia de fornecimento física demora mais tempo. Não quer dizer que seja muito – a Nokia construiu a sua a partir do zero em cinco anos.
Que ferramentas ou competências são indispensáveis a essa mudança de paradigma?
Reconhecer que o problema existe é a forma de avançar muito mais depressa para implementar uma metodologia como esta, que tem de ser liderada a partir do topo. Depois, olhar para o plano de negócio, transformar uma organização compartimentada numa que seja estruturada em cadeias de valor. De seguida ter uma equipa multidisciplinar que represente toda a cadeia de valor, e centrar no cliente, como faz por exemplo a Amazon. A indústria da moda pensa que é customer centric, mas não é (risos).
Ter mais players com maior dimensão facilitaria?
O problema é a fragmentação ao longo de toda a cadeia de valor. Muitos retalhistas não têm as suas próprias fábricas, subcontratam a produção. Terá de haver alguma consolidação, não sei se dos retalhistas, se dos fabricantes, ou de ambos. E poderemos ver fabricantes tornarem-se retalhistas e estes a entrar no fabrico, numa integração vertical – que é a única forma de reduzir os prazos da conceção até à entrega. No curto prazo, a grande coisa que a indústria pode fazer é parar de comprar três vezes mais do que precisa.
Esta indústria, apesar da inovação, já tem um histórico ambiental pelo gasto de água e uso de químicos. Basta só reduzir desperdícios ou tem de se ir mais longe para contrariar esta pegada?
Temos de mudar os fundamentos do modelo de negócio comprando três vezes menos e, com isso, libertar dinheiro e investir em tornar essas práticas mais sustentáveis. Há muito marketing da indústria à volta da sustentabilidade. Mas quem vai pagar por isso, de onde virá o dinheiro? Esta mudança de paradigma pode acontecer muito depressa se educarmos os líderes de que não só é melhor para o planeta ou para as pessoas, mas também para o negócio. E de que a única forma de começar a resolver a questão da sustentabilidade é libertar capital e lucros na organização para investir nisso.
Que papel é que a pandemia pode ter nessa transformação e tomada de consciência?
Como em qualquer crise o sistema está a ser posto à prova e pode exacerbar um problema e fazê-lo parecer maior. No Reino Unido há muitos retalhistas a entrar em insolvência, não porque não estejam a vender nada, mas porque não têm dinheiro. Se o dinheiro estiver todo comprometido em stock que comprou há 9 ou 12 meses para a primavera-verão, está preso em existências que agora, no inverno, já ninguém quer. É muito triste ver empresas e fechar e pessoas afetadas, mas também há um lado positivo nisto. Os que começaram este percurso [de lean management] vão ter um desempenho melhor e espero que outras empresas percebam que há outro caminho. Milhares de milhões de euros podem ser poupados e aplicados em melhorar a situação dos trabalhadores nas fábricas, investir em novas tecnologias e na economia circular para não termos de cultivar tanto algodão.
Isso se o impacto económico desta pandemia nos consumidores não perpetuar o círculo vicioso de produzir barato e alcançar a maior margem…
O Toyota Business System nasceu de uma crise, no pós-II Guerra Mundial, quando a Toyota estava numa posição semelhante: sem dinheiro, os seus líderes sacrificaram os seus empregos para salvar os das pessoas nas fábricas (não tenho a certeza que venhamos a ver isso por parte de muitas grandes empresas…) e isso forçou a desenvolver esta forma de gerir uma organização. Vamos recuperar, haverá alguma dor, mas poderemos aprender que as crises acontecem e que muitas, mais do que pensamos, são criadas por nós. Não é a primeira vez que uma pandemia acontece, e voltará a acontecer. Se começarmos a adotar este pensamento de deixar a produção em massa e concentrarmo-nos no consumidor e no valor, as sociedades e as empresas serão muito mais resilientes, com ou sem crise.
Esta transformação também tem de ser feita do lado do consumidor? Em Portugal, a cada ano que passa, 200 mil toneladas de roupas acabam em aterros ou em incineradoras…
É necessária muita educação. E não só na moda, veja na alimentação onde há tanto desperdício. Passámos por revoluções industriais de produção em massa e as pessoas reconhecem que isso não é sustentável para o planeta – embora haja alguns líderes que ainda não acreditam [risos]. Satisfazer necessidades humanas básicas como as da comida para nos alimentarmos e do vestuário para nos aquecermos têm um impacto gigantesco no planeta porque todos precisamos deles. Mas o enorme consumo no mundo ocidental é desproporcional em relação a outros pontos do globo. Não quero destacar a indústria da moda como o mau da fita, isto também acontece noutras indústrias.
E que impressão tem das empresas portuguesas do setor?
Visitei algumas fábricas que começaram este caminho, algumas delas podem estar a trabalhar com Kaizen ou com outros sistemas. Há um retalhista, a Salsa Jeans, que foi indicado como um caso de excelência, que começou este percurso com muito sucesso. A sua produtividade no armazém tornou-se quase dez vezes superior ao que era.
Imagine que estava frente a frente com um trabalhador desta indústria. Como é que o convencia a participar nesta transformação?
[silêncio longo, hesitação] Acho que lhe diria que há uma comunidade a querer mudar a indústria e estamos a fazê-lo. Mas que tenha esperança, pois acredito que essa mudança vai acontecer. Talvez ele já tenha percebido os desafios desta indústria e pode contribuir tentando comunicá-los aos seus líderes e envolvê-los. Tenho a certeza de que tem ideias maravilhosas para melhorar o seu trabalho e o da sua equipa. A única razão pela qual as telecom cresceram foi porque a indústria se reuniu e acordou. Se duas marcas fizerem cada uma um telemóvel e eles não conseguirem comunicar entre eles, ninguém ganha. A indústria tem de se juntar e estabelecer as regras e o que devem partilhar.