No centro do cruzamento, onde a rua entronca na calçada, há uma pequena cabina cinzenta com vidros espelhados e opacos. À frente, a Embaixada da Federação da Rússia e, por detrás desta fachada, um quarteirão com uma dezena de parabólicas voltadas discretamente para o céu.
O cenário – podíamos estar em Berlim – dá à cabina reminiscências de um Checkpoint Charlie em plena Guerra Fria. Mas estamos no centro de Lisboa e os tempos são outros: a aldeia global impôs-se, o mundo está envolto em camadas digitais e os muros – pelo menos, os das línguas – vão caindo à medida que as distâncias se encurtam.
A prova disso está literalmente na porta ali ao lado. À entrada do edifício da Unbabel, a empresa portuguesa de serviços de tradução que combina Inteligência Artificial e inteligência humana, uma colaboradora dá as boas-vindas em inglês a quatro jovens estrangeiros recém-chegados à companhia. Lá dentro não falta a parafernália indispensável ao espaço de trabalho dos millennials em tecnológica que se preze. Uma mesa de pingue-pongue, um espaço com televisão onde podem jogar PlayStation, e somos lembrados das aulas de surf às quintas-feiras de manhã (foi à volta deste desporto que surgiu a ideia da empresa). O espaço é pet friendly – há dias em que quatro ou cinco cães, incluindo o Moses, visitam o escritório – e todos os trabalhadores são acionistas da companhia. Algumas das condições que levaram a empresa a ser considerada em 2018 a segunda melhor para trabalhar no País, no inquérito da EXAME.
O reconhecimento também vem de fora. “Um inquérito recente da Culture Amp [plataforma de feedback de colaboradores] compara-nos com as melhores tecnológicas a nível global e em muitos fatores estamos à frente, como dedicação, ambição, engagement, belief”, sinaliza Vasco Pedro, CEO da Unbabel e, com João Graça, Sofia Pessanha, Bruno Silva e Hugo Silva, um dos fundadores da empresa em 2013. “[Procuramos] pessoas abertas, com um genuíno prazer de interação com outras, ambiciosas, que gostam de desafiar ideias e pragmáticas”, acrescenta.
Em menos de um ano, as novas entradas permitiram quase dobrar o número de colaboradores – de 90 para cerca de 150 –, dispersos pelas três localizações da empresa na capital, pela presença em Londres e pelos escritórios de Nova Iorque e de São Francisco, este recentemente inaugurado. Um reforço só possível depois da maior ronda de financiamento da empresa, uma série B no valor de $23 milhões (cerca de €20 milhões), concluída em janeiro do ano passado. “Está a ir muito para recrutamento. Os recursos humanos são sempre o mais importante e representam a maior parte do investimento”, refere Vasco Pedro na entrevista à EXAME, numa das cabinas destinadas a trabalho a pares no escritório de Lisboa.
As contratações atravessam verticalmente a estrutura. A COO (chief operating officer) Carmen Carey entrou em junho; meses depois, começou a trabalhar o novo vice-presidente de product; e foi ainda contratada uma pessoa para liderar a unidade de Inteligência Artificial aplicada. Em meados de dezembro, excluindo as funções freelance ocupadas sobretudo pelos tradutores, estavam abertas mais de 30 posições na página de recrutamento, para funções de vendas, investigação e desenvolvimento, marketing e operações. Dos colaboradores, 43% são estrangeiros e as mulheres representam a mesma percentagem.
Em Lisboa, no quarteirão próximo da embaixada russa, está o núcleo da operação: produto, investigação e operações, vendas e marketing. Londres e São Francisco (onde a empresa, com o objetivo de ter cinco colaboradores, tem passado os últimos meses a consolidar a presença) funcionam como postos avançados para a prospeção e a aquisição de novos clientes. Na calha está a entrada na Ásia, apontada para este ano de 2019. Shenzhen e Pequim são opções em cima da mesa para a China continental, mas Singapura também entra nos cenários. “É logisticamente mais fácil e uma boa porta de entrada em todo o Sudoeste Asiático”, sustenta o CEO. Com a chegada ao Oriente, a empresa poderá expandir horizontes geográficos à segunda maior economia do mundo, mas abre sobretudo a porta a novos mercados e idiomas. Atualmente, do seu portefólio de 28 línguas, com tradução de e para inglês, já fazem parte, além do chinês, o japonês, o coreano, o tailandês e o vietnamita.
Lucrar com os ganhos da tecnologia
É neste caldo que se movimentam os cerca de 110 mil tradutores freelance que, em regime de trabalho remoto a partir de vários pontos do globo, colaboram com a empresa e que são pagos à hora ($8 a $18), servindo 180 clientes, em áreas como viagens, gaming e tecnologia, entre os quais a rede social Pinterest, o criador de sites Weebly e a plataforma de petições Change.org. Os textos passam por tecnologias de Inteligência Artificial, são enviados em blocos para pós-edição humana que deteta e corrige erros, para serem recombinados e revistos finalmente por um editor sénior a nível mundial.
“São empresas grandes e globais por definição, que vendem diretamente ao consumidor, em que o desafio de línguas diferentes é particularmente relevante. E em que, como se ganha dinheiro, há um grande incentivo para prestar apoio de alto nível ao cliente”, explica. Todos os anos, os avanços tecnológicos permitem que a máquina faça o dobro do trabalho, o que leva a uma redução em quase metade do esforço humano. Acelera a velocidade sem degradar a qualidade da tradução e o ganho económico daí resultante – argumenta – beneficia todos os envolvidos: “Se 80% for feito pela máquina, podemos usar muito desse valor para pagar aos seres humanos. O valor que a tecnologia traz pode ser dividido entre a redução de custo para o cliente e o aumento do pagamento aos tradutores”, acrescenta.
A velocidade, a qualidade e o impacto da Inteligência Artificial na redução de esforço humano são três dos quatro indicadores considerados essenciais pela Unbabel na avaliação da sua performance.
O quarto é o crescimento das receitas, que em 2018 poderão ter triplicado para $10 milhões, depois de se terem multiplicado por 1000% no exercício anterior. É este crescimento rápido do negócio que poderá levar a atingir um patamar que exija mais capital, depois de as últimas séries terem consolidado parceiros como a Scale Ventures, a Notion Capital e a M12 Ventures, a capital de risco da Microsoft.
“Tínhamos pensado [fazê-lo] no meio de 2019, mas o negócio continua a crescer muito depressa. Com esta velocidade, há muito interesse no mercado em tornar capital disponível e investir na Unbabel, pelo que talvez faça sentido antecipar. Não está nada planeado, mas é possível que estejamos em conversas tão cedo como no início do ano”, admite.
Nasdaq à vista?
A ronda de financiamento de há um ano apreciou a Unbabel abaixo dos $100 milhões. Para já, ainda está distante de cruzar o patamar de unicórnio – avaliação superior a $1000 milhões – a que ascenderam outras empresas fundadas a partir de Portugal, como a OutSystems e a Talkdesk.
A Farfetch, a pioneira na lista de startups erguidas a unicórnio, “voou” entretanto para a Bolsa de Nova Iorque. Mas pode não demorar muito até que à Unbabel lhe brilhe a estrela do animal mitológico ou lhe cresçam as asas para ir para a Bolsa.
“As avaliações são interessantes e de celebrar. Mas acho que nenhuma dessas empresas tinha o objetivo de ser unicórnio, foi uma consequência dos objetivos de crescimento e do valor que estão a criar. É como uma curva exponencial, no início não parece sê-lo, mas de repente… Acho que estamos no começo desse crescimento, já se veem algumas coisas,” acrescenta Vasco Pedro.
Empresa global em Portugal
O crescimento acelerado e a última ronda de investimento voltaram o foco dos investidores para a Unbabel, que, de então para cá, foi sondada por uma tecnológica norte-americana. Vender? Só numa situação “muito excecional”, assegura. “A nossa ambição continua a ser a de criar uma grande empresa.” E até já tem na cabeça uma data para entrar em Bolsa. “2023: vai ser o ano da entrada da Unbabel no Nasdaq”, profetiza, sorridente. “Pode sempre ser antes. Neste momento, se tivesse de escolher, seria o Nasdaq. Mas pode ser que, entretanto, a Bolsa de Valores portuguesa…” deixa, enigmático, num ano em a plataforma de financiamento Raize entrou na praça nacional e a empresa de brinquedos científicos Science4you perseguiu o mesmo objetivo.
Ter colecionado investidores em São Francisco ou em Londres trouxe à empresa credibilidade e capacidade de atrair talento global, e ser português já não é hoje um óbice para quem procura financiamento lá fora. E ainda que Portugal esteja a adaptar-se, Vasco Pedro diz que a culpabilização de ter de ser humilde torna difícil ao mundo percecionar o bom que se faz no País. “Temos receio de parecer que queremos sobressair e tentar ser melhores do que os outros”, defende.
Cote em Nova Iorque ou em Portugal, vá para Singapura, Shenzhen ou Pequim, cresça nos EUA ou entre noutros mercados, há uma certeza: a empresa não vai deixar o País. “Desde o início, os fundadores quiseram criar em Portugal o tipo de empresa com que sonhavam”, recorda Vasco Pedro. “De certa maneira, a Unbabel não é uma empresa portuguesa: é uma empresa global que está em Portugal.”
“Quando a informação é suficiente na nossa bolha, não temos necessidade de sair dela”
É possível que as mesmas pontes que ligam o mundo em plena quarta revolução tecnológica estejam a criar novos muros e bolhas de perceção da realidade? É antes o refúgio numa sensação de segurança e o isolamento naquilo que as pessoas compreendem, defende Vasco Pedro. O fundador da Unbabel acredita que, no futuro, tudo poderá mudar, caminhando-se para uma aproximação física entre a inteligência humana e a das máquinas. De tal forma, que poderá deixar de ser necessária a linguagem tal como a conhecemos.
A Inteligência Artificial, no centro do negócio da Unbabel, está cada vez mais por todo o lado. Vamos conseguir conviver com ela e encontrar, como humanos, o nosso lugar no trabalho?
Vai ser a ferramenta que permitirá a adaptabilidade do cérebro humano, dando-lhe a capacidade quase instantânea de se ajustar a novo conhecimento. O cérebro humano biológico não tem essa capacidade suficientemente rápida para lidar com a velocidade de mudança da sociedade, o que cria uma sensação de insegurança muito grande. Uma das razões da inclinação de extremas-direitas, do efeito Trump, é as pessoas agarrarem-se a algo que compreendem. Vai haver uma componente de Inteligência Artificial ligada diretamente ao cérebro, que não vamos sentir, e vamos ter a capacidade de aprender muito mais depressa, de aceder a informação em tempo real, de gerir conceitos complexos. Eu diria mais ao contrário: será que o ser humano vai ter capacidade de se adaptar se não tiver Inteligência Artificial imbuída?
Até onde é que essa inter-relação poderá ir?
Estamos a assistir às bases do que vai ser a próxima evolução do ser humano, em que a Inteligência Artificial e a biológica vão fundir-se. Quem é que hoje consegue trabalhar sem um computador ou um telemóvel? Já está a haver um offload [descarga] de parte do nosso cérebro biológico, que é muito preguiçoso e está sempre a otimizar – se não necessita de reter, a informação vai-se. O que é um complemento fantástico de máquinas que conseguem retê-la indefinidamente. O cérebro é fantástico na capacidade de ligar a informação e de a usar. Difícil é a nossa interação com a Inteligência Artificial ser feita sobretudo através de dispositivos, com uma largura de banda muito limitada, através dos nossos olhos, de som, dos nossos dedos.
Acredita numa desmaterialização dessa interação?
A ligação direta da Inteligência Artificial ao nosso cérebro através de interfaces cérebro-computador é das coisas mais entusiasmantes que estão a acontecer. Empresas como a Neuralink, do Elon Musk, o Darpa, nos EUA, estão a investir imenso na ligação direta homem-máquina. Nos próximos dez, 20 anos, vamos ver essa capacidade de cada vez mais aceder a essa informação e usar computação diretamente a partir do nosso cérebro.
E é para aí que a Unbabel pode caminhar?
Acho que sim. Começámos por criar uma infraestrutura para lidar com texto, agora estamos a recriá-la para lidar com som e vídeo. E isso é só o início. Acreditamos na ligação homem-máquina, que atualmente é feita através de tecnologia que existe. A nossa filosofia consiste em aumentar os seres humanos com máquinas para reforçar a produtividade, a capacidade de execução, ter benefícios dos dois lados, máquina e ser humano. Acho que é para aí que vai haver evolução humana.
No limite, eu pensaria que quero falar em russo e estaria a falar em russo consigo?
No limite, nem sequer precisaria de falar. Estaríamos a comunicar telepaticamente, considerando que haveria uma capacidade de tradução de transmissão de dados transformados em impulsos elétricos, que depois seriam comunicados.
As barreiras linguísticas nunca estiveram tão baixas como agora e nunca estivemos tão ligados, mas isso nem sempre quer dizer que as pessoas se entendam…
Estamos a ver duas tendências quase contraditórias, acesso à informação cada vez mais fácil e barreiras a serem reduzidas, mas uma divergência cada vez maior de linguagem. Há 20 anos, 80% de todo o conteúdo online era inglês. Agora representa cerca de 20% e a expectativa é de que caia para 10%, ao mesmo tempo que aparece quase uma internet chinesa, outra brasileira, outra russa. É cada vez mais fácil criar conteúdo e quando o fazemos é tipicamente na nossa língua nativa. O efeito secundário é estarmos cada vez mais habituados a consumir conteúdo na nossa língua, porque é suficiente.
Estupidifica-nos?
É difícil dizer, acho que esse fenómeno está na génese de uma série de coisas que estamos a ver no mundo, nomeadamente da polarização de ideias e não só na política. Como tenho conteúdo na área com que já me identifico, não preciso de ver fora. No Japão, nas décadas de 80 e 90, era muito comum os japoneses irem estudar um ou dois anos para os EUA. Hoje é raríssimo, porque já têm informação e tecnologia suficientes. Quando a informação é suficiente na nossa bolha, não temos necessidade de sair dela.
Fica a sensação de que, afinal, a tecnologia tem mais contras do que prós. Ainda nos pode ajudar nesse diálogo?
Acho que sim. A linguagem tem um comportamento de sobrevivência. Como normalmente falamos com pessoas que falam a nossa língua, ficamos com a sensação de que todos falam a nossa língua. Hoje há a ideia de que toda a gente fala inglês, mas não temos a noção que 75% não fala, nem como segunda língua. Chegamos ao Vietname, à China, e se quisermos ir a um sítio ligamos o Google Maps e não precisamos de interagir com ninguém. Hoje estou no Vietname e interajo no Facebook com os meus amigos, coloco fotos do que estou a ver – a minha interação é mais fechada. Mas se conseguir genuinamente interagir com as pessoas à minha volta, comunicar por exemplo telepaticamente, isso muda completamente o paradigma.Será que o ser humano vai ter capacidade de se adaptar se não tiver Inteligência Artificial imbuída?