Ricardo Salgado terá usado quatro empresas para pagar prémios e contrapartidas a uma série de funcionários e colaboradores do Grupo Espírito Santo, de forma oculta, para que esses rendimentos não fossem detetados em Portugal. A prática, diz o Ministério Público no despacho de acusação do caso BES/GES a que a VISÃO teve acesso, terá permitido “desviar centenas de milhões de euros”, primeiro para a Espírito Santo Enterprises, depois para a Alpha Management (a partir de 2013), e os funcionários do Banco Espírito Santo (BES) que estavam a par destes pagamentos terão usado “linhas de comunicação privadas, via private net, com o propósito de manterem oculta a prática criminosa, reiteradamente desenvolvida ao longo de anos”.
Nem a Enterprises nem a Alpha Management constavam dos organogramas do GES nem dos relatórios apresentados a auditores e a entidades de supervisão. O mesmo acontecia com a Clauster Limited, criada no Belize, e que serviu para pagar a funcionários do GES mais de 4,5 milhões de euros, e com a Balenbrook Investments, criada nas Ilhas Virgens Britânicas e que serviu para remunerar 15 funcionários do BES, entre eles Ricardo Salgado. Os pagamentos feitos entre 2005 e 2014, a pedido de Salgado ou do seu primo José Manuel Espírito Santo, foram agrupados por geografias e ramo de negócio, tendo servido para compensar terceiros, “consultores externos” e funcionários do GES (do BES, do Banque Privée, da ESFIL, da ES Services, da Gestar, da área dos seguros e também da saúde). Segundo o Ministério Público, estes seriam remunerados “de acordo com o grau de importância da sua participação nos atos criminosos” que Salgado definira e ordenara.
Nas folhas de Excel com os pagamentos, os sete procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) responsáveis pela investigação descobriram que muitos dos beneficiários estavam identificados com pseudónimos e nomes em código. Era o que acontecia, por exemplo, com os dirigentes da Espírito Santo Saúde, que terão recebido bónus e pagamentos mensais através da Enterprises, pelo menos em 2011: Isabel Vaz, presidente da comissão executiva do grupo Luz Saúde, era identificada pelo pseudónimo Pititi; Tomás Fonseca pelo pseudónimo Matateu; João Novais por Castilho e Ivo Antão por Imahala Panzi.
João Alexandre Silva, diretor-geral da sucursal do BES na Madeira, e do Departamento de Banca Internacional do BES, usava contas com os nomes de Pargo, Caramujo e Hanham. Recebeu por esta via 1,1 milhões de euros da Enterprises, 477.500 euros da Alpha e 210 mil euros da Balenbrook. Paulo Jorge, seu adjunto, tinha uma conta na Suíça em nome de Doismiledez e foi aí que recebeu 971 mil euros via Enterprises e 379.900€ via Alpha, entre 2010 e 2014.
João Freixa, antigo administrador do BES, era o Jaguar. Ricardo Bastos Salgado, filho do antigo presidente do Banco Espírito Santo, era o Labutes. O primeiro recebeu mais de meio milhão de euros em prestações mensais, entre 2008 e 2013. O segundo recebeu mais de 500 mil euros euros, através de transferências mensais feitas entre 2008 e 2014.
Teresa Amorim, antiga secretária de Ricardo Salgado, era o Baixinho (recebeu perto de 371 mil euros), Elsa Ramalho, que tratava das relações com os investidores, era o Roadshow (recebeu 294 mil euros da Enterprises). Pedro Cohen Serra, do departamento financeiro do BES, era o Medufushi (recebeu perto de 300 mil euros), Paulo Ferreira era identificado como Rabina (115 mil euros), Guilherme Moraes Sarmento, que trabalhava na direção de desenvolvimento internacional, tinha uma conta em nome de Centurion (81 mil euros) e Pedro Cruchinho, que viria a ser nomeado presidente da Comissão Executiva do Banco Económico em Angola (que derivou do BESA), tinha outra conta em nome de Alforreca (através da qual recebeu 100 mil euros).
José Macedo Pereira, que foi revisor oficial de contas de empresas do BES, era identificado como Poirier (47.500€) e Pedro Amaral como Detox (40.500€). Já Rui Guerra, que substituiu Álvaro Sobrinho na presidência do BESA, recebeu 40 mil euros e estava identificado como Tomix. José Pedro Caldeira da Silva, que foi diretor-executivo do banco, era o Kombucha.
25 arguidos vão a julgamento
Estes são alguns detalhes descobertos pelos procuradores José Ranito, Olga Barata, Antero Taveira, Filipe Marta Costa, Rita Madeira, Ana Catalão e Ana Cristina Pereira ao longo de seis anos de investigação ao colapso do BES e do GES. No despacho final de encerramento de inquérito deste que é apenas o primeiro processo-crime do Universo Espírito Santo – foram extraídas nove certidões para que as investigações prossigam em novos inquéritos -, Ricardo Salgado é o recordista de acusações: o Ministério Público quer que vá a julgamento por 65 crimes. São estes um crime de associação criminosa, doze crimes de corrupção ativa no setor privado, 29 crimes de burla qualificada, cinco de infidelidade, dois de manipulação de mercado, sete de branqueamento, oito de falsificação de documento e um de crime de falsificação de documento qualificado.
Ao todo, o Ministério Público acusou 25 arguidos: 18 pessoas e sete empresas. Alega que as suas condutas causaram um prejuízo superior a 11800 milhões de euros. Além de Salgado, o DCIAP quer levar a julgamento os primos Manuel Fernando Espírito Santo e José Manuel Espírito Santo, administradores, diretores e funcionários ligados ao Departamento Financeiro de Mercados e Estudos (DFME), o antigo administrador financeiro Amílcar Morais Pires, dois diretores da sociedade suíça Eurofin, dois funcionários do BES Madeira, e Francisco Machado da Cruz, o famoso comissaire aux comptes que responsabilizou Salgado por um passivo oculto de 1300 milhões de euros nas contas da ESI.
Num longo comunicado, a defesa de Ricardo Salgado alega que antes da acusação o ex-presidente do BES “foi confrontado com infindáveis juízos de valor vagos e genéricos, em vez de ter sido confrontado com factos concretos, tal como a lei obriga” e que isso impediu que Salgado prestasse declarações “sobre interminável matéria nova” nas vésperas da acusação. O antigo líder do Banco Espírito Santo rejeita ter praticado qualquer crime, diz que a acusação “falsifica” a história do BES e que enquanto esteve à frente do banco não houve lesados. Ricardo Salgado alega ainda que “sempre colocou os interesses do BES acima de quaisquer outros, sempre agiu de boa-fé e na convição de que as opções tomadas serviram o melhor interesse do banco, dos seus clientes, colaboradores e acionistas” e remata: “Por muito que alguns queiram, a história de vida de uma pessoa não se apaga com a facilidade com que se muda uma marca.”