Há 9 anos, a VISÃO desafiou uma família portuguesa a contabilizar o lixo acumulado durante um mês. No final da experiência, Marta Elias e o seu agregado familiar de cinco pessoas haviam deitado fora 72 quilos de material reciclável e orgânico. Com estes valores, não divergiam quase nada da média nacional, mas aos olhos de Bea Johnson, que nessa altura, na Califórnia, estaria em plena fase de transição, seria um atentado. Normal, já que, durante 2015, ela, o marido Scott, e os filhos Max e Léo, de 16 e 15 anos, só não conseguiram eliminar umas coisinhas que cabem dentro de um frasco de meio litro, daqueles que fecham em vácuo. Vamos por etapas, degrau a degrau, para se perceber o que passaram para chegar ao desperdício (quase) zero.
Antes de 2006. A família vivia nos arredores de São Francisco, nos EUA, numa casa de 280 metros quadrados, tinha dois carros, quatro mesas e 26 cadeiras. Ela era artista e professora de francês. Ele trabalhava para uma multinacional de software – rotinas que pareciam decalcadas de episódios da série Donas de Casas Desesperadas, segundo as palavras de Bea Johnson.
Durante 2006. A família mudou-se para o centro da cidade, para poder andar a pé e não estar dependente do carro para tudo. Mas, antes de encontrar a casa certa, alugou um apartamento durante um ano e, ao mudar-se para lá, levou apenas o necessário. No decorrer desse tempo, Bea apercebeu-se de que, quando se tem menos, ganha-se tempo para o que realmente importa, como fazer programas com os amigos, estar com a família, organizar piqueniques e passeios na natureza.
Depois de 2006. Quando encontraram a casa perfeita, muito mais pequena do que a anterior, olharam para a tralha que mantiveram guardada durante um ano inteiro e perceberam que a maioria não era precisa para nada, e livraram-se do supérfluo. Ao mesmo tempo, iam ganhando motivação para se despojarem dos bens ao verem documentários sobre o estado do Ambiente. “Podemos mudar o futuro enquanto consumidores”, aperceberam-se.
Até 2008. A família começou a dispensar produtos embalados, o primeiro passo para chegar ao desperdício zero – é esse o título do livro sobre o processo de transformação consciente, que acaba de ser lançado em Portugal (Editorial Presença). Daí para a frente, a exigência foi sempre aumentando. Bea chegou ao extremo de fabricar o seu pão, a manteiga, o queijo, e de usar bicarbonato de sódio em vez de champô.
De 2010 até hoje. A experiência ensinou-a que manter-se nos extremos não seria sustentável ou exequível a longo prazo. Deixou, por isso, cair algumas certezas na tentativa de atingir o equilíbrio numa vida simples. Talvez por isso haja algumas pessoas mais extremistas que lhe apontam alguns pecados, como viajar de avião, comer carne (ainda que só uma vez por semana) ou usar papel higiénico. Garante que hoje não precisam de mais nem de menos para continuarem a ser uma família feliz. E que esta rotina, peculiar aos olhos do resto do mundo, se transformou na normalidade para eles.
De erre em erre
Bea Johnson, 42 anos, já não se apresenta como artista. Esta francesa, emigrada nos EUA, aprendeu a pregar o seu estilo de vida em conferências, com diversos públicos. “Não se trata de reciclar mais, mas de reciclar menos, prevenindo mais.” E enumera os seus cinco “erres” que, diz, devem ser conjugados por esta ordem: recusar o que não precisamos (como catálogos do supermercado ou uma caneta grátis que nos oferecem numa conferência); reduzir as coisas de que precisamos (o melhor é não estarmos expostos a estímulos ao consumo, avisa); reutilizar, ou seja, substituir o que é descartável por uma alternativa que não se deite fora (o exemplo mais evidente é a troca de sacos de plástico por outros de pano); reciclar, mas apenas o que não se conseguir recusar, reduzir ou reutilizar; e por fim compostar (“rot”, em inglês) o pouco que resta.
Se se levarem os cinco “erres” a peito, chega-se à quantidade ínfima de lixo que Bea aprisiona no tal frasco de vidro. Lá dentro dá para descortinar, por exemplo, o invólucro de um tampão – “não é meu, porque uso copo menstrual” –, etiquetas da roupa, papel de fotografia (do único postal de Natal que ainda recebem), fio elétrico, o resto do casquilho de uma lâmpada, espuma do capacete da bicicleta, silicone do lavatório, que é mudado todos os anos, um pedaço de papel com restos desse silicone, capa para o telefone do mesmo material – e comprada em segunda mão, escusado será dizer.
O bolso também agradece
Com um consumo tão consciente, o orçamento familiar caiu em 40 por cento. “Antes, se tivesse vindo a Portugal, teria enchido a mala de souvenirs. Este verão, estive cá com a minha família e preferimos gastar o dinheiro em experiências, como andar num barco de piratas.” Hoje, se adquirem alguma coisa, é porque essa coisa precisa mesmo de ser substituída (um buraco no sapato ou uma t-shirt que deixou de servir são exemplos válidos). As compras, por se fazerem fugindo às embalagens, saem mais baratas – 15% do preço de um produto destina-se à caixa onde ele vem acondicionado. “Também usamos energia solar e instalámos recentemente um sistema de aproveitamento de águas dos banhos para regar as plantas.”
Os ganhos deste modo de vida estendem-se à saúde. Pelo menos, é o que acha o casal. Atentemo-nos nos exemplos: Scott sofria de sinusite crónica, que o obrigava a ir, duas vezes por ano, ao médico e acabava sempre a tomar antibiótico. “Nunca mais lá foi”, garante Bea, que também se livrou das conjuntivites recorrentes, provocadas pela maquilhagem que usava antes da mudança de paradigma. Continua a pintar-se, e a manter a boa aparência, só que para isso não precisa de muitos recursos (e são todos comestíveis): cacau em pó para tornar a pele mais colorida e amêndoas queimadas para revirar as pestanas. “Quando encontramos o sistema adequado às nossas rotinas, percebemos que procurando o desperdício zero se poupa imenso tempo. A vida torna-se mais simples e rica, mas em experiências, não em coisas, porque passa a basear-se no ser e fazer em vez de no ter.”
Meus ricos filhos
Max e Léo são adolescentes. E por isso adivinha-se que não andem pela escola a apregoar a quantidade de lixo que não fazem em casa. Mas falarão, com certeza, de todas as atividades que experimentaram com a família desde que a vida deles se transformou – mergulhar entre dois continentes, viajar de bicicleta, fazer bungee jumping ou skydiving. “Gastamos o dinheiro a realizar os nossos sonhos”, regista Bea. Neste contexto, a roupa torna-se supérflua. As compras fazem-se duas vezes por ano, antes de chegar o verão e o inverno. Nessa altura, os jovens podem pedir uns ténis Adidas ou uma t-shirt Quicksilver, que a mãe fará de tudo para as encontrar nas lojas em segunda mão. “Quando os amigos dos meus filhos vão lá a casa, ficam bem impressionados com o ar futurista da decoração, porque é tudo branco e minimalista. Mas só nas datas em que eles fazem anos é que temos de avisar para não lhes darem presentes descartáveis, mas sim experiências.” Ou dinheiro, que não se deve descartar e é sempre reutilizável.
(Artigo publicado na VISÃO 1232, de 13 de outubro)