Ainda não é desta que iremos ver um leopardo à solta numa instituição cultural. Em 1975, Julião Sarmento apresentou a proposta à Sociedade Nacional de Belas Artes, numa folha exposta agora no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), na cidade homónima, rodeada por uma seleção de obras relacionadas com o tema da animália, recorrente na sua obra durante as décadas de 70 e 80 do século XX. “Há projetos que sabemos que nunca irão passar disso mesmo, mas neste caso fiz tudo e mais alguma coisa para o conseguir realizar”, recorda o artista, aquando da visita à exposição Leopard in a Cage. Este desejo de transgressão é um dos traços distintivos do seu trabalho. No CIAJG, reúnem-se uma série de projetos, de um arco temporal extenso (1969-2018) que nunca passaram do papel. “É uma obra muito conhecida, é difícil fazer algo de inovador, por isso agarramo-nos a projetos inéditos, que nunca foram mostrados”, explica Filipa Oliveira, responsável pela curadoria, juntamente com Nuno Faria. “O critério de escolha foi olhar para os seus cadernos e ver o que era fazível e, ao mesmo tempo, o que fazia sentido mostrar na atualidade.”
A enorme diversidade de meios utilizados na sua obra – pintura, filme, fotografia, desenho, som, tapeçaria e escultura – perpassa a mostra. “O artista parece reclamar para o processo criativo uma liberdade radical e inalienável, uma insaciável curiosidade por tudo aquilo que o rodeia”, referem os curadores no texto de apresentação. Na concretização dos projetos, foi-se absolutamente fiel às ideias originais. Algumas, tiveram finalmente os meios e o tempo para ver a luz do dia, como a tapeçaria Bilhete de Elétrico (1969-2018), uma reprodução fiel deste objeto de uso comum, em grande escala, e uma das obras que mais satisfação deu a Julião Sarmento ver sair da gaveta. Outras, obedecem a uma relação histórica do artista com o minimalismo, como a série de pinturas com variações a preto e branco (cores recorrentes no seu trabalho) feita propositadamente para esta ocasião, ou a homenagem ao artista norte-americano Carl Andre, no conjunto de cinco telas, de formas distintas, mas rigorosamente com a mesma área. A última sala condensa o espírito de Leopard in a Cage. Na escuridão, ouve-se uma voz a descrever a montagem de uma exposição. Mais uma vez, sobressai o desejo, a vontade de deixar obra, não fosse Julião Sarmento um dos mais prolíficos artistas contemporâneos portugueses.
Deste segundo ciclo expositivo do CIAJG consta também Mundo Flutuante – Trabalhos: 1996-2018, de Pedro A.H. Paixão, no qual o artista foi convidado a interagir de forma extensiva com as temáticas que atravessam o museu. “Há um diálogo que cobre todas as coleções, é um trabalho muito experimental, não há a preocupação de estabilizar, mas sim de inquietar os objetos que aqui estão”, sublinha Nuno Faria, o curador. Uma mostra de cariz antológico, com a obra do artista a imiscuir-se entre as peças das três coleções de arte – tribal africana, pré-colombiana e arqueológica chinesa – e a obra de José de Guimarães e de outros artistas contemporâneos, além de objetos do património popular, religioso e arqueológico da região, que compõem este “museu mundo”. “Mais do que vaguear pelo museu em si, vagueei pela sua perspetiva filosófica. [A exposição permanente] chama-se Para Além da História e apresenta uma condição muito particular, que é um passado livre da História, ou seja, livre de interpretações e de narrativas”, conta Pedro A.H. Paixão.
Não se trata tanto de uma retrospetiva de trabalhos, mas de uma retrospetiva da ação e da aproximação do artista a diferentes temas, com peças a brincar com o conceito museológico. Desenhos (a lápis), sobretudo, extremamente meticulosos, mas também vídeo, som, escultura, que vão desde os primeiros anos do percurso do artista a obras inéditas, concebidas para esta exposição.
Natural de Angola, os trabalhos mais recentes de Pedro A.H. Paixão empreendem um regresso às origens, onde aborda pela primeira vez a questão do colonialismo. Sem apontar dedos. “Queria apresentar um campo sensível em que as pessoas imergissem numa série de questões históricas, simbólicas, e depois fizessem o que quisessem com aquilo que viram”, sublinha o artista. Dando espaço, tal como acontece no CIAJG, a diferentes interpretações. “Uma obra rara”, descreve Nuno Faria, “que traz para o plano do visível as dimensões política e poética, a potência do acontecimento a surgir e o testemunho das vozes silenciadas pela crueldade da História”.
Centro Internacional das Artes José de Guimarães > Av. Conde Margaride, 175, Guimarães > T. 253 424 715 > Até 7 de outubro, ter-dom 10h-13h, 14h-19h > €4