O pianista Raul Costa está a atacar a segunda música quando entra a lebre, envolta numa couve-roxa bonita como celofane, e regada com um demi-glace à antiga, daqueles de lamber os dedos. Ter 23 anos e tocar numa festa de tributo ao chefe de cozinha austríaco Dieter Koschina não é para todos, mas este menino é uma “rising star”, elogiara a alemã Joy Jung, que andara uns minutos antes de mesa em mesa, a pedir silêncio durante o seu mini concerto. “A música fica bem com a comida, vão ver”, prometia a dona do hotel Vila Joya, em Albufeira.
Sabíamos que sim. Antes, já ouvíramos uns músicos de Nice, a cantora a namorar a voz de Nina Simone. E, nos intervalos, o DJ seguira à risca a playlist de Joy, feita de musiquinhas para machucar corações em inglês. Mas Raul Costa toca e, por mais que toque como poucos, a lebre, substancial, há de regressar para dentro quase tão intocada como os copos de vinho foram indo ao longo do jantar. Um desperdício.
“É o último?”
Por esta altura, faltava pouco para a meia-noite, estávamos sentados há mais de três horas, e a lebre, uma criação do chefe alemão Klaus Erfort, era o 11.º (e antepenúltimo) prato a pedir as nossas atenções. A meio, por altura do kingfish com perfume de Sião (caril, erva príncipe…) e frango, inventado por Juan Amador, um outro chefe também alemão mas filho de espanhóis, Klaus Jung, pai de Joy, perguntara “É o último?” e todos na mesa tinham sorrido.
Klaus Jung acumula mais jantares destes no currículo que saúde para estar tanto tempo à mesa, pensei antes de lhe mostrar o bloco onde acabara de escrever: “Ainda faltam mais dois peixes, três carnes e duas sobremesas, e já estou satisfeita, muito obrigada.”
Imagino desse lado alguém a murmurar “pobre e mal agradecida”, mas só aceito “inexperiente e otimista”. As porções eram pequenas o suficiente para acreditar que seria capaz de comer tudo e não apenas de tudo. Esqueci-me do fator tempo. Éramos 94 a jantar; e, mesmo com mais de 130 pessoas a trabalharem para que tudo fosse perfeito, entre a cozinha e a sala, houve pausas entre os pratos, teve de ser.
Um “não festival”
A máquina estava oleada. Quando Joy decidiu comemorar os 25 anos de Koschina no Vila Joya com uma festa, os 102 funcionários prepararam-se para duas noites sem descanso (sim, este domingo, 6, há um segundo jantar) e o hotel para receber mais 15 chefes e os seus ajudantes. Seria um “não festival”, nas suas palavras, uma celebração mais íntima, entre amigos (quase todos com estrelas Michelin, escreva-se), sem grandes confusões nem patrocínios.
Às duas da tarde de sábado, cinco horas antes de começarem a ser servidas as bebidas de boas-vindas, a azáfama era grande, mas sem gritos ou atropelos. Cada um desempenhava a sua tarefa – podia ser terminar um molho, cortar ervas aromáticas, limpar copos ou desempacotar velas – e era como assistir a uma coreografia bem ensaiada.
Às quatro da tarde, Koschina cozinhava a pedido da equipa da SIC, para podermos vê-lo em ação no programa Se7e, e nem parecia que se aproximava uma grande noite. Calmíssimo, de óculos azuis na ponta do nariz, salteou num instante uns carabineiros com espinafres, a que juntou fatias finas de cabeça de vitela antes de os comer à colher, tão tenros estavam. E, pelo caminho, explicou o que estava a fazer, respondeu a perguntas, sorriu.
“Petiscos”, disse ela
No terraço, de frente para o mar, Joy também sorria aos clientes que aproveitavam os momentos de sol entre umas pancadas de chuva de meter medo. A maioria era clientes habituais, repetentes num dos 22 quartos do Vila Joya e/ou nas duas estrelas de Koschina, dali a pouco a serem recebidos com blue gin (de mirtilos) e água tónica, a bebida preferida do chefe.
Às seis da tarde, os empregados já estavam fardados, de preto, e quase todos jantados nos bastidores onde, numa folha A4 com fotografias do cão labrador preto que víramos a cirandar por ali, se pedia para não alimentar Otto – “se não ele nunca mais vai comer a sua comida”.
Lembrar-nos-emos disso logo nos “petiscos” (Joy dixit) servidos no terraço, as esferas de rabanete a roubarem protagonismo aos tártaros em mini cones de massa filo. Mas mais ainda quando, às oito e meia, nos sentarmos à mesa.
A ementa não traz verbos nem promessas de “camas” disto ou daquilo. Para quê?, pensamos ao provar o primeiro (duplo) prato, do chefe austríaco Clemens Nachbaur, “Melão. Queijo de Cabra. Cardamomo” e “Salmão dos Alpes. Beterraba. Abóbora”, a espuma de queijo a casar tão bem com o melão que se ouvem suspiros à mesa e a frase “Quero isto todas as manhãs”.
Da enguia à lebre
A boca estava feita para a enguia fumada, o foie gras de ganso e a redução de Touriga Nacional imaginados por Hans Neuner, o chefe duas estrelas do restaurante Ocean, no vizinho Vila Vita. Mas logo a seguir aterra o lagostim com tandoori, do holandês Jacob Jan Boerma, e já não sabemos do que gostamos mais. Talvez por isso, quando a vieira com parmentier e trufas, do galego Fernando Agrasar, se desfaz na boca, precisamos de fechar os olhos para conseguir saborear mais uma mistura de sabores.
Depois do meio adocicado kingfish que arrumara definitivamente o apetite de Klaus Jung, a cavala com beringela e grão, do alemão Nils Henkel, adivinha-se como o prato mais duro e arriscado da noite. Mas acaba por ser perfeito para abrir caminho para a criação de Eckart Witzigmann, o chefe austríaco, hoje com 75 anos, que convenceu Koschina a tornar-se chefe de cozinha. O seu linguado com cabeça de vitela e espinafres, mais sopa de tomate fria e espuma quente, casa bem com a frase “Bem-vindos ao paraíso” com que todos são recebidos ao chegar ao Vila Joya.
Quando o coelho com trufas de Alba e salada de batata, do austríaco Jörg Wörther (mais um pai espiritual de Koschina), faz a transição para a carne, olhamos para o relógio e já passa das onze da noite. O bicho está uma delícia, só podia, mas não conseguimos dar cabo dele todo. E o mesmo acontecerá com o prato de barriga de porco com repolho e bola de berlim, do também austríaco Rudy Leiter, e com a lebre do início do artigo.
Os sorvetes de shiso verde e vermelho – palavra japonesa para Perilla frutescens, uma planta que dizem saber a anis e a menta – fazem as vezes de trou normand, ou é apenas gulodice minha. Certo é que não hesito frente ao sorvete de café com mascarpone e citrinos que se segue. E sinto-me psicologicamente preparada para o jantar desta noite. Pois é, Otto, vida de cão é nunca poder ir ao céu e voltar.
Vila Joya > Estrada da Galé, Albufeira > T. 289 591 795