Nem tudo é glamoroso na vida de um comissário europeu. Em Toulouse, no arranque do EuroScience Open Forum (ESOF), os termómetros marcavam 30 graus, mas, dentro do pavilhão, onde estava a ser realizada a cerimónia de abertura, parecia estar o dobro, com políticos, cientistas e adolescentes a suarem compulsivamente. Após um discurso inicial e cerca de uma centena de apertos de mão, além das conversas de circunstância, provavelmente poucas coisas apeteciam menos a Carlos Moedas do que assistir a um longo tango dançado por dois pares a meia-luz depois do almoço. A determinada altura, o comissário vira-se para a fila de trás, onde estava o seu chefe de gabinete, António Vicente. “O Boris Johnson demitiu-se.” Isso não o preocupa? “Sim, é preocupante… Agora é que preciso mesmo de um café.”
São necessários muitos cafés para acompanhar as viagens de Carlos Moedas. Os dias começam às 6h da manhã e acabam às 22h. Balançam entre lanches, ao final da tarde, em monumentos à beira-rio e em reuniões protocolares em pequenas salas alcatifadas, onde a máquina de café não funciona. “As viagens são muito cansativas. É duro em termos de alimentação e de conforto e, principalmente, por ficar longe da família”, diz logo à chegada ao aeroporto, em Toulouse, onde será uma das figuras centrais do bianual ESOF, o maior encontro científico pan-europeu.
Depois destes dois dias em Toulouse, o comissário regressará a Bruxelas para, no dia seguinte, voltar a viajar até Paris, para participar numa iniciativa sobre mobilidade. Cinco dias depois estará a caminho de Viena, tendo de regressar, dois dias mais tarde, à Bélgica para a reunião do colégio de comissários. No dia a seguir já estará em Lisboa, para uma entrega de prémios da Fundação Gulbenkian e para encontros low profile com Rui Rio e Pedro Passos Coelho. É difícil acompanhar o ritmo? “Durante a semana é cansativo. Mas, nestes quatro anos, Juncker nunca me ligou num fim de semana”, conta, enquanto esperamos na fila do controlo fronteiriço.
É possível que, em breve, a vida de Carlos Moedas se torne mais calma. O comissário europeu está a entrar no último ano do seu mandato à frente da Ciência e da Inovação comunitárias e começa a ser altura de pensar no futuro. Continuar na Comissão é obviamente a opção mais desejada. Além de gostar do que faz, uma renovação por mais cinco anos permitiria tornar-se uma voz mais influente no colégio, numa área que continuará a ganhar relevância nos próximos tempos.
No entanto, essa decisão cabe ao Governo de António Costa e, até agora, o primeiro-ministro não informou o comissário das suas intenções. O círculo mais próximo de Moedas não está confiante. Antecipa que o PS aproveite esta oportunidade para nomear alguém da sua área política. Recorde-se que, em mais de 30 anos na União Europeia, só houve um comissário socialista.
Quando é confrontado com esses cenários, Carlos Moedas baixa as expectativas. “Nunca pensei muito no meu futuro. Já me sinto um grande privilegiado em ter tido um mandato”, explica ao jantar, num restaurante italiano, entre um tacho de massa e um copo de vinho branco. Contudo, não nega que é neste tipo de papel internacional que se sente mais confortável. “Talvez seja aquilo que mais tem que ver comigo”, reconhece. “Trabalhei muito tempo no privado e sempre me senti incompleto. Servir as pessoas, ajudar os cientistas é algo que gosto de fazer, principalmente numa altura em que todos se interessam menos por política. O maior valor que lhe posso dar neste plano internacional, seja na Comissão Europeia ou noutras organizações.”
Uma bazuca com mais poder de fogo
Carlos Moedas não teve azar na pasta que foi convidado para gerir. Raramente lhe calham más notícias para dar e pode seguir de perto temas que nos despertam a curiosidade – desde carros autónomos e viagens comerciais ao Espaço até às novidades nos smartphones e revoluções nos fármacos.
A meses de terminar o mandato, deseja deixar como legado a criação de “uma ligação entre Portugal e a Ciência”. “Ser o primeiro comissário a conseguir 100 mil milhões para a Ciência e deixar um legado de inovação, com a criação do Conselho Europeu da Inovação”, sublinha.
A ideia para esse conselho foi lançada há dois anos por Moedas, para apoiar projetos científicos inovadores, startups e empresas que procurem financiamento. Um organismo centralizado que privilegiará produtos disruptivos, com mais probabilidades de falharem, mas também com um retorno potencialmente maior. O projeto-piloto tem 2,7 mil milhões de euros para gastar entre 2018 e 2020 e vem acompanhado por mecanismos de aconselhamento.
É uma ideia querida a Carlos Moedas, mas a principal missão é garantir o reforço da bazuca central. O Horizonte 2020, o megaprograma de apoio à investigação e inovação sob a sua alçada, tinha um orçamento inicial que superava os 77 mil milhões de euros. Cerca de metade foi gasta e mais de 615 milhões tiveram Portugal como destino. O valor já era elevado, mas a proposta de orçamento comunitário da Comissão para 2021-2027 prevê um aumento para até perto dos 100 mil milhões, o que representa um crescimento de 30% (ou 50%, se tivermos em conta a saída do Reino Unido). A política também se faz de simbolismo, e ser responsável pelo primeiro orçamento de 12 dígitos seria uma herança importante.
Se inicialmente havia quem achasse que a pasta que coube a Moedas não era apetecível, hoje a opinião deve ser diferente. A área ganhou mais peso nos últimos anos e, com ele, mais poder de fogo. Foi a vencedora na proposta da comissão. O influente Politico, o site que todos leem em Bruxelas, nomeou Carlos Moedas o mais poderoso neste orçamento. Até existem outros comissários com mais dinheiro, como o da agricultura, mas Moedas tem um maior controlo sobre a distribuição de financiamento e uma presença mais forte nas negociações com governos, universidades e empresas. “O comissário Moedas é um homem de sorte”, afirmou o vice-presidente Jyrki Katainen. “Ninguém se opõe ao apoio à inovação e à investigação.”
À conversa com prémios Nobel
O cargo dá-lhe também o privilégio de conversar com algumas das pessoas mais inteligentes do mundo. O seu grupo de conselheiros científicos, a cuja reunião a EXAME pôde assistir, conta com mentes brilhantes, como o Nobel da Medicina, Paul Nurse, e o anterior diretor do CERN, Rolf-Dieter Heuer. “Há uma sensação de uma certa humildade em estar ao lado de um prémio Nobel”, confessaria mais tarde Carlos Moedas, no regresso ao hotel.
Esta admiração pela comunidade científica não é apenas da boca para fora. Como qualquer político, o comissário tem preocupações com a imagem – desde que foi para Bruxelas deixou crescer a barba, e a sua equipa evita que sejam publicadas fotos antigas –, mas talvez o facto de não ter crescido no viveiro das “jotas” faz com que não seja obcecado. E, às vezes, o entusiasmo leva mesmo a melhor. No final do primeiro dia do ESOF, o matemático Cédric Villani, vencedor da Medalha Fields, em 2010, e uma espécie de rock star em França, estava rodeado de dezenas adolescentes desejosos por tirarem uma selfie com ele, e Moedas – que, como seria de esperar, não estava a receber pedidos de selfies – não teve problemas em procurar uma cadeira para subir, conseguindo tirar uma foto ao cenário.
Villani, conhecido por se apresentar sempre com alfinetes de peito em forma de aranha (a deste dia veio do Níger), só tem coisas boas a dizer de Moedas. “Foi muito bom trabalhar com ele. É um dos melhores comissários. Tem uma visão para a Europa e não tem medo da luta”, afirma à EXAME.
Carlos Moedas não é um político como Marcelo Rebelo de Sousa, que domina qualquer sala onde entra com um carisma magnético que rouba as atenções. A altura faz parte dessa equação. Não é um homem alto, mas isso também o torna acessível. Esforça-se por ser simpático e paciente, fala com confiança em várias línguas e mostra interesse no que lhe estão a dizer. Está bem preparado e dificilmente é apanhado desprevenido. Das várias reuniões a que a EXAME assistiu, deu para perceber que não impõe pontos de vista e faz questão de ouvir todas as pessoas à mesa. Há quem veja aqui falta de assertividade, mas há valor em escutar os outros, sobretudo quando eles são os maiores especialistas do mundo.
No inferno das bancas que cada país trouxe ao ESOF, insiste em parar em cada uma e tirar todas as fotografias que lhe pedem, não recusando dois dedos de conversa. O “polícia mau” é António Vicente, responsável por tirá-lo de diálogos demasiado longos. Às vezes, essa amabilidade dá a volta aos planos para a viagem, como quando insiste em voltar atrás para cumprimentar as pessoas que lhe estiveram a servir o almoço, na sede da Airbus, ou quando é preciso atravessar meia Toulouse para encontrar um restaurante que respeite as restrições alimentares do jornalista.
Mesmo estando integrado na comitiva, não é fácil arranjar 15 minutos sozinho com o comissário (a entrevista nas páginas seguintes é uma síntese de alguns momentos em que isso foi possível). Há sempre alguém que lhe quer dizer alguma coisa, chamar a atenção para um tema ou convidá-lo para uma visita. Os horários são controlados ao segundo.
Da Multivan ao avião
Para um comissário responsável pela Ciência e pela Inovação, dá jeito ser engenheiro. Na fábrica da Airbus, não precisa que lhe expliquem como os aviões levantam voo – o formato curvado das asas alivia a pressão do ar sobre elas, o que facilita a subida do aparelho. No entanto, é preciso mais do que isso para que estes encontros funcionem. Mesmo uma viagem como esta, que não envolve encontros com chefes de Estado, exige uma grande preparação.
A documentação de preparação para a visita tem 41 páginas, com informação pormenorizada sobre cada pessoa que o comissário irá encontrar, que mensagens devem ser sublinhadas, números para citar, uma análise dos temas em discussão, horários, locais e até os posts que deverão ser feitos nas redes sociais.
A equipa que traz consigo é fundamental. Keith Sequeira, conselheiro sénior, domina todos os dossiers e tem sempre uma explicação ou um número pronto. António Vicente é o ouvido mais procurado entre aqueles que querem sensibilizar o comissário para algum tema, sendo uma das pessoas em quem Moedas mais confia, tendo já sido seu chefe de gabinete quando era secretário de Estado, em Portugal.
As viagens obrigam a ter jogo de cintura. Num momento está a falar sobre ética, com um Nobel da Medicina, e literalmente dez minutos depois está a discursar, para uma centena de alunos de 16 anos, sobre o futuro da mobilidade na Europa. “Nem sabia que era para fazer um discurso”, diz já dentro do carro, ao seu chefe de gabinete. “Era para te surpreender”, brinca António Vicente. Cinco minutos mais tarde, o comissário já está a apertar a mão a uma dezena de homens engravatados e a mulheres de salto alto, desde prefeitos regionais a presidentes de universidade. Em menos de uma hora, sobe ao palco do ESOF para discursar.
A Volkswagen Multivan de seis lugares é o transporte para todo o lado e o refúgio do calor e da confusão da viagem. A intensidade dos encontros contrasta com os momentos de silêncio na carrinha. É nesses que vai mantendo contacto com a família, em Bruxelas. Neste dia, era o filho de 14 anos a telefonar para lhe dizer que ganhou um jogo num torneio de ténis. “Ele é bom…”
Carlos Moedas tem três filhos, dois deles já adolescentes, fruto do casamento com Céline Abecassis-Moedas. Essa é uma das suas principais preocupações quando fala do futuro político. Obrigá-los novamente a mudar de vida e a enfrentar memórias desagradáveis. Há dois anos, contava à Notícias Magazine que foi insultado, por duas vezes na rua tinha o filho ao lado. Uma das consequências dos tempos da Troika, em que os portugueses ficaram a conhecer intimamente o significado da palavra austeridade e em que Moedas era o governante responsável pelo cumprimento do Memorando de Entendimento. Talvez o seu momento mais impopular tenham sido os elogios ao relatório do FMI que propunha cortes drásticos em salários e pensões, e que levou Carlos Carreiras a pedir a sua demissão.
São tempos que não deixam saudades nem uma imagem que Carlos Moedas se tem esforçado por deixar para trás. Tem tido alguma ajuda. Portugal e a Europa entraram num ciclo virtuoso de crescimento, a Comissão Europeia adotou uma postura bastante mais flexível com os países – algo que Moedas tem ajudado a promover, com bastantes declarações simpáticas sobre o Governo português – e, claro, a sua pasta é muito mais suscetível de dar boas do que más notícias. O facto de ter abandonado o governo de Passos Coelho, um ano antes das eleições, também o ajudou a descolar da imagem de burocrata frio.
Quando faz as contas, Moedas percebe que já passou metade da vida adulta no estrangeiro. Como tantos emigrantes, não tem problemas em assumir que o filme A Gaiola Dourada o comoveu, principalmente a cena em que o filho finge não conhecer a mãe por esta ser porteira. “Se calhar por isso é que sou mais defensor de Portugal”, enquanto comissário. À memória vem a saída do País do Procedimento dos Défices Excessivos e a sua atuação no episódio das sanções, que Marcelo elogiou.
O regresso à política nacional não está excluído, mas Moedas tem sido muito cauteloso na linguagem, evitando pôr-se em bicos de pés e hostilizar Rui Rio – até porque os timings não são fáceis. O seu mandato termina em cima das eleições legislativas, em Portugal, onde se antevê um resultado débil do PSD. Acresce a isso que o comissário não domina propriamente os bastidores do partido nem controla as bases. Seria necessária uma vaga de apoio – eventualmente “à la Macron” – para que tal fosse possível. “O mais importante, principalmente na oposição, é a união em torno de um líder. Podem contar comigo para tudo o que possa contribuir para o sucesso desse líder”, assegura. Porém, não se ouve o barulho de uma fechadura. A porta fica apenas encostada. “Gosto de política – da nacional também. Sempre que puder contribuir, contribuirei. […] Obviamente que um dia quero regressar a Portugal e, voltando, terei sempre um papel político, até porque gosto de sentir que ajudo.”
Na fábrica da Airbus, os técnicos estão entusiasmados em mostrar a Carlos Moedas um novo software que eles têm estado a desenvolver, pedindo-lhe que experimente aterrar o avião num simulador. A comitiva, apertada pela hora do voo de regresso a casa, começa a abandonar a sala, antes de Carlos Moedas concluir a tarefa. Porém, ele insiste em terminar a aterragem, mesmo já sem ninguém a assistir. “Tenho de aprender, para ser piloto na próxima vida.” Não ficou claro se estava a falar da próxima encarnação ou se já se preparava para alternativas
a Bruxelas e à São Caetano na Lapa.