Quando, em 1935, Ramón Areces Rodríguez comprou a alfaiataria El Corte Inglés na Rua Preciados, em Madrid, estaria longe de imaginar a guerra que 80 anos depois ensombra o império construído em cima da insígnia de armazéns. E que o epicentro desse conflito estaria dentro do próprio grupo, opondo os dois braços da herança do antigo presidente da empresa, Isidoro Álvarez. O episódio mais recente deu-se no início desta semana, quando Dimas Gimeno, afastado há 15 dias da presidência do grupo, anunciou que vai impugnar a destituição.
No entanto, para encontrar os fios da trama vivida nos últimos meses é preciso recuar pelo menos até 2014, quando Dimas, então com 38 anos, ascende à liderança da cadeia dois dias após a morte do tio Isidoro. O executivo tinha cumprido o rito de passagem de poder de tio para sobrinho, vinda da primeira presidência. Aos 20 anos vendia camisas na loja madrilena do Paseo de la Castellana; em 2001, esteve na equipa que abriu, em Lisboa, a primeira loja em Portugal.
Aquando da morte de Isidoro, ao fim de um quarto de século na presidência, a sua herança estava concentrada na Isidoro Álvarez Sociedad Anónima (IASA), por sua vez a segunda maior acionista do El Corte Inglés (22,18%). A maior parte da sociedade (69%) foi deixada às filhas adotivas de Isidoro, Marta e Cristina Álvarez Guil; os restantes 31% ficaram nas mãos dos irmãos de Isidoro (César e Maria Antónia) e do filho desta, o delfim Dimas Gimeno.
E é aqui que as coisas se complicam, segundo o La Vanguardia. A assunção da parte da herança da família de sangue (“decisão arriscada e corajosa”, como Dimas descreveu ao El Mundo) trouxe um presente envenenado: uma dívida de 100 milhões de euros em imposto sucessório a pagar pelos irmãos e pelo sobrinho (ao contrário das filhas adotivas, são considerados legatários e não herdeiros universais). Outras alterações penalizaram o ramo dos irmãos e do sobrinho: o património da IASA foi fortemente reduzido de 140 milhões para 50 mil euros, e a irmã Maria Antónia viu a sua herança cortada a metade, para cinco milhões de euros.
Entretanto, em 2015 as irmãs terão começado a preparar um putativo “assalto” ao maior acionista dos armazéns, a Fundação Ramón Areces, que tem 37,39% do capital. Dimas terá concordado com a entrada das primas no conselho da fundação, alegadamente na condição de que não questionassem o seu lugar na presidência do El Corte Inglés. Não foi o que aconteceu.
A tensão escalou até outubro passado, quando as irmãs – também administradoras do El Corte Inglés – ajudaram a retirar funções executivas a Dimas e a atribuí-las a dois novos administradores delegados. Menos de sete meses depois já era impossível disfarçar a guerra aberta: quem esteve na reunião de administração no início de maio contou ao Economia Digital que os gritos e as acusações pareciam dignos de um confronto entre “hooligans”. Pelo meio, o presidente denunciou irregularidades na segurança da empresa, descobriu um microfone instalado na sua casa e contratou especialistas em comunicação para aquilo que o El Economista chamou de “guerra suja”, tentando manter-se no cargo.
Um mês depois, nove dos dez vogais afastaram Dimas e elegeram um dos administradores delegados, Jesús Nuño de la Rosa, para o substituir. É a primeira vez que se interrompe o mandato de um presidente (os anteriores morreram em funções), e que alguém exterior à família assume o cargo.
Gimeno contou ao El Mundo que vai impugnar o afastamento, alegando falhas processuais. Em meados de julho o processo de impugnação foi admitido no tribunal de Madrid e os advogados das duas partes estiveram em contacto para tentar encontrar soluções para o diferendo, que podem passar por um pagamento de 40 milhões de euros para que Dimas Gimeno possa liquidar os impostos associados à herança.
Será mais uma ação judicial a juntar às que tentam contestar a redução de património da IASA e o corte na herança e até questionar a legitimidade da adoção – ocorrida quando as irmãs tinham mais de 40 anos e pouco tempo antes de a comunidade de Madrid isentar de impostos as heranças de familiares de primeiro grau.
“Ainda me sinto presidente”, desafiava Dimas em junho, dizendo que queria terminar aquilo que começou e garantindo estar apostado em pacificar. Porém, dizia que isso só será possível quando houver um projeto claro para a empresa, que passe, entre outros, pela entrada em Bolsa. Quando voltará a ser primavera no El Corte Inglés?
(Artigo publicado na VISÃO 1321 de 28 de junho; atualizado a 27 de julho)