Uma política fiscal sobre a riqueza, como propõe, teria sido preferível à austeridade que a Comissão Europeia e o Eurogrupo impuseram desde abril de 2010?
Houve, de facto, excessiva austeridade. Demasiados cortes nos rendimentos e excessivo recurso aos impostos de um modo geral. Quando estamos numa situação de inflação perto de 0% e de crescimento próximo de 0%, reduzir o nível de dívida atual através da austeridade vai levar décadas e décadas. O que aconteceu na Grã-Bretanha no século XIX é um bom exemplo disso.
O que ensina o caso britânico?
Analiso-o no livro – levou quase um século de excedentes orçamentais [de 2 a 3 pontos percentuais do PIB desde 1815] para que a Grã-Bretanha reduzisse gradualmente o rácio da dívida de perto de 200% em 1810 para 30% do rendimento nacional em 1910. Para quem investiu em dívida pública britânica, com uma taxa de remuneração de 4% a 5% ao ano com uma inflação perto de 0%, foi um muito bom negócio na época. Para a sociedade em geral foi um século de castigo. Temo que o queiram fazer agora na Europa – que os contribuintes sejam obrigados a gastar anualmente durante décadas mais dinheiro no pagamento dos juros da dívida do que na educação, por exemplo.
A austeridade na gestão da crise da dívida da zona euro agravou a concentração da riqueza?
É difícil avaliá-lo de momento, mas a Europa tem aumentado o seu stock de riqueza mais do que dívida pública. Esquecemos frequentemente que o que esta crise vai deixar é mais património privado do que dívida pública. O que é certo é que a gestão da crise na zona euro foi e é calamitosa. Temos praticamente o mesmo nível de dívida pública bruta e líquida no PIB nos Estados Unidos e na zona euro. O rácio para os EUA é inclusive um pouco mais elevado, está acima de 100% em termos brutos, e, no entanto, eles conseguiram melhores resultados macroeconómicos nestes anos de crise. É, a meu ver, um problema de instituições europeias.
O que falta, então, na zona euro?
Eu milito fortemente por uma união orçamental da zona euro. Temos de ir muito além do que fazemos hoje. Há limites para o que o Banco Central Europeu (BCE) pode fazer sozinho na gestão da crise. Precisamos de dar poder ao que designo de “Parlamento orçamental” da zona euro – um novo corpo parlamentar de decisão que decida sobre um orçamento e que, por exemplo, decida também sobre os lucros sobre as empresas, onde temos de ter um imposto comum face à enorme concorrência fiscal, com diversos pequenos países a fazerem de um IRC reduzido o elemento-chave da sua estratégia económica. Se não, a má alternativa é aumentar mais e mais o imposto sobre o consumo e sobretaxar o trabalho, poupando os rendimentos do capital devido a essa concorrência fiscal agressiva que há dentro da zona euro.
Qual a alternativa?
A que desenvolvo no capítulo 16 do livro. Uma taxa extraordinária progressiva sobre o capital privado, avaliados todos os ativos em termos líquidos, é a solução mais justa e aliás eficiente, que deve ser tomada pelo parlamento depois de um debate democrático. Recordo o caso de França em 1945 que aplicou um imposto extraordinário cujas taxas variavam progressivamente entre 0% e 25%.
E se isso for um pouco utópico olhando à correlação política de forças atual?
Na ausência de uma política fiscal desse tipo, o aumento da inflação até certo ponto pode desempenhar um papel útil, apesar dos riscos conhecidos que acarreta – aliás, historicamente foi, assim, que as dívidas públicas muito elevadas foram geridas. A pior solução, em termos de justiça e eficiência, é a austeridade – que é a orientação que está a ser seguida.
Com uma desinflação em curso desde meados de 2013, e até um fantasma da deflação a rondar, valeria a pena o BCE aumentar a sua meta de inflação de médio prazo que foi fixada em perto de 2%?
Sim, penso que é melhor uma meta superior do que viver numa situação prolongada de inflação perto de 0% sobretudo quando temos estes níveis de dívida pública. Mas insisto num ponto – não podemos pedir de mais, e tudo, ao banco central.
Porquê?
É preciso ter em conta que os bancos centrais têm ferramentas limitadas de política monetária e falta-lhes legitimidade democrática para tomar opções. Inclusive os banqueiros centrais não sabem exatamente o que vai acontecer com os empréstimos que fazem, com a liquidez que geram à velocidade da luz. Até podem gerar “bolhas” em outros sectores financeiros. Em suma, não é possível fazer funcionar a zona euro apenas com uma única instituição federal forte que é o BCE.
Mudando, agora, para a razão de publicação do seu livro. A escolha do título foi um piscar de olhos ao “O Capital” de Karl Marx? A revista britânica “The Economist” apelidou-o recentemente de “Um Marx moderno”…
É ridícula essa comparação. O “Capital no Século XXI” é um livro de história sobre o dinheiro, o rendimento e o capital, sobretudo desde a Revolução Industrial. O objetivo foi colocar o tema das desigualdades numa perspetiva histórica e contribuir para fazer agora um debate democrático mais informado sobre estas questões.
E quanto ao seu ‘marxismo’?
Sobre o meu ‘marxismo’ é absurdo – sou da geração pós-Guerra Fria, pós-comunista. Tinha 18 anos em 1989, quando o Muro de Berlim caiu. Nunca tive nenhuma tentação pelo comunismo. A questão para mim sobre o mercado ou a propriedade privada nem se coloca. Estou vacinado contra a retórica anticapitalista.
Mas alguns dos grandes economistas do século XIX atraem-no…
Partilho com alguns deles, como David Ricardo e Karl Marx, a preocupação de colocar a questão da distribuição da riqueza no centro da análise económica. Durante a Guerra Fria no século XX houve uma espécie de tabu sobre a questão da distribuição nas economias capitalistas, em parte por boas razões, e noutra parte por más razões.
E a questão é ainda mais pertinente depois desta crise global recente?
Sobretudo depois desta crise.
Se não houver uma mudança política, onde vai conduzir a trajetória atual de concentração da riqueza nos famosos “0,1%” ou mesmo “1%” da população? Essa tendência é politicamente viável?
Sinto-me melhor a analisar o passado do que a fazer previsões. No entanto, quero sublinhar que essa tendência de concentração é particularmente mais forte nos EUA do que até na Europa – por aqui ainda temos o Estado social e uma política fiscal mais atuante que limita as coisas. A questão do domínio de uma oligarquia não é apenas um problema da Rússia e da China – coloca-se nos EUA.
Na Europa o risco é menor?
Está-se mais distante desta ameaça, mas há o problema de uma lógica de concorrência fiscal desenfreada em relação aos impostos sobre as empresas que pode facilmente levar a uma dinâmica de forte desigualdade no longo prazo.
Corremos o risco do regresso a uma sociedade dominada por uma oligarquia, como diz Paul Krugman, ou da criação de uma economia dominada por uma plutocracia, uma ‘plutonomia’, um termo cunhado por analistas do Citigroup, esmagando as classes médias?
Eu acho que a emergência de uma classe média patrimonial, que foi um dos traços do século XX, é uma conquista frágil. A parte das classes médias na riqueza nacional tem diminuído, mais claramente nos EUA. Não sei predizer onde isso poderá levar. Mas uma coisa julgo certa: se a evolução atual de concentração da riqueza prosseguir, a parte das classes médias vai continuar a cair.
É curioso que muitas das recensões do seu livro elogiam-no em relação às três primeiras partes, mas depois zangam-se seriamente com a parte final. Alguns mais radicais acusam-no mesmo de ser uma espécie de Marx disfarçado de homem do fisco…
De facto há quem se tenha interessado mais pelas primeiras partes do que sobre a parte final. E à medida que avançaram no livro começaram a inquietar-se. “Ó, como o senhor Piketty está possuído de ideologia”. Achei isso divertido. Penso que os tabus ideológicos estão do lado deles e parece-me que ainda não estão prontos para um debate sério. A abertura de espírito termina lá onde começam os interesses do portefólio.
“Não sou candidato ao Nobel”
Mesmo os que discordam da famosa ‘quarta parte’ do livro, com as propostas fiscais sobre os altos rendimentos e a riqueza acumulada no topo das sociedades desenvolvidas de hoje, reconhecem o trabalho original desenvolvido por Thomas Piketty. Alguns elogios chegam ao ponto de o ver como candidato a um Nobel de Economia. O professor responde que está mais interessado no debate e em prosseguir com o projeto de base de dados sobre a concentração mundial da riqueza.
O conhecido professor de Harvard, Lawrence Summers, numa crítica que publicou recentemente na revista “Democracy” considera-o um bom candidato ao Prémio Nobel de Economia por este trabalho.
Não tenho grandes comentários a fazer. Não sou candidato [risos]. Vejo-me mais como investigador em ciências sociais do que estritamente como economista. A economia tem de se abrir mais para a história e mesmo para a filosofia, como acontece com Amartya Sen. Não tenho fantasmas sobre o Nobel. Importa-me mais que o livro inspire uma maior aproximação entre diversas ciências do que a importância de medalhas. Vejo a Economia como uma subdisciplina das ciências sociais. Não me agrada a expressão “ciência económica”. Muitos dos métodos dos economistas levam-nos muitas vezes a negligenciar a história e o facto de que a experiência histórica continua a ser a nossa principal fonte de conhecimento.
Esperava este surpreendente sucesso de vendas nos Estados Unidos e na Amazon com a tradução em inglês do livro que publicou em francês no ano passado?
A editora em inglês Harvard University Press não estava habituada a esta situação [risos]. Estão a ter problemas com a impressão de novas edições depois de as outras terem esgotado. Não me passava pela cabeça este sucesso, mas eu esperava uma boa reação, confesso.
Porquê?
Não é um livro para economistas. Não necessita de grande bagagem técnica para ser lido.
Mesmo as fórmulas que usa explica-as bem e quanto ao detalhe remete para um anexo on-line.
Pois. É mais um livro de história do dinheiro e virado para um público internacional curioso por estes temas. Os EUA têm uma história complicada com a desigualdade. Mas o livro também está a ser bem recebido na Europa, na Ásia e na América Latina. Entre outras, a tradução para português está em curso. Na Europa claro que poderá haver distintas leituras do livro, por exemplo sobre a dívida pública, de que já falámos.
Qual é o propósito do livro se a sua motivação não é ideológica?
O que eu pretendo é colocar estas questões no debate democrático numa perspetiva histórica e não ideológica. A mensagem do livro é que não há “forças naturais” no sistema que evitem o que se passou no século XIX. É preciso reler o que se passou então para evitar que essa deriva se repita hoje.
Quais são os próximos passos da sua investigação?
Por agora não tenho nenhum plano em relação à continuação do livro. Há um projeto coletivo, o “The World Top Incomes Database”. Estamos a alargar o leque de países, sobretudo entre as economias emergentes.
Há críticos que dizem que a vossa investigação não tem em conta essa realidade emergente…
Não é correto. Abordamos o assunto no livro. E vamos dar particular atenção à China, que já temos na base de dados. Estive recentemente neste país, numa conferência sobre o património, e começa-se a discutir a possibilidade de um imposto sobre a riqueza. Os chineses querem uma solução estrutural e não medidas avulsas, caso a caso, como na Rússia, através de expropriação ou mesmo prisão.
O SEU A SEU DONO
“Não foi Marx nem a União Soviética que inventaram o imposto progressivo sobre os rendimentos.
Foram os Estados Unidos”
CRÍTICOS QUE NEM LERAM O LIVRO
“Em relação a muitas críticas de que defendo isto ou aquilo, é preciso que primeiro leiam o livro”
REGRESSO AO PASSADO
“O peso das fortunas privadas no início do século XXI parece estar na iminência de regressar aos níveis elevados do século XIX”