Só questões de marketing e de preconceito linguístico justificam que Vem e Vê (1985), a grande obra do russo Elem Klimov, não tenha tido, no seu tempo, repercussão internacional semelhante a Apocalypse Now (1979, de Francis Ford Coppola). O filme, intocável na frontalidade e na crueza, mantém-se um retrato impiedoso de um dos mais violentos períodos da História contemporânea. É um olhar intemporal sobre a monstruosidade e as crueldades inficionáveis que o Homem pratica em situações extremas.
Vem e Vê parte de acontecimentos históricos da anexação da Bielorrússia pelo exército nazi, durante a Segunda Guerra Mundial. Sabe-se que centenas de aldeias foram incendiadas e reduzidas a cinzas, juntamente com a população, e isto com os mais refinados requintes de malvadez, para lá do que a nossa imaginação possa suspeitar.
Klimov mostra-nos a guerra. Um retrato frio e franco que pouco tem que ver com o jeito estilizado dos norte-americanos, em que tudo é mais ou menos limpo e emoldurável, em busca de heróis. Na guerra de Klimov, mais do que a exaltação dos heróis, retrata-se a inocência dos mártires. E isso é feito com um realismo implacável, como se a câmara realmente nos introduzisse nos devastadores cenários de destruição. Subsiste, durante grande parte do filme, uma ideia de vazio – de deriva e de loucura, individual e coletiva, bem como da luta mais básica pela sobrevivência, longe das questões de orgulho ou de glória. Há uma animalidade comum a predadores e presas que ultrapassa em muito o instinto animal – um nível de desumanização que, na verdade, só está ao alcance do ser humano. E Klimov filma o terror a seco, sem efeitos especiais.
Tudo é feito graças ao movimento da câmara mas também às interpretações viscerais de vários atores, com natural destaque para Aleksei Kravchenko, que tinha apenas 16 anos na altura da rodagem. Vem e Vê é um marco do cinema soviético que não perde atualidade nem esconde as suas raízes em realizadores como Alexander Dovzhenko – e que tem influência clara em grandes obras do cinema contemporâneo, como, por exemplo, A Minha Alegria (2011), de Sergei Loznitsa.
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Vem e Vê > De Elem Klimov, com Aleksei Kravchenko, Olga Mironova e Liubomiras Laucevicius, 142 min