Há uma ideia de agrado quando olhamos para o negativo em tamanho A3, cru, objetivo, resultado de um trabalho muito físico. Os traços são feitos a marcador escuro, que preenchem o espaço de modo a deixarem em branco as linhas que definem as figuras de cada desenho. Depois, são sobrepostos, um a um, por uma estampa de cor, pincelada a aguarela, que dota os desenhos de uma certa candura. É na exposição, na galeria da editora Abysmo, em Lisboa, que podemos perceber as camadas inerentes à alquimia das imagens que António Jorge Gonçalves reúne em livro (lançado em simultâneo) uma vez que nos mostra a composição de cada desenho em separado: na primeira sala estão pendurados os tais negativos a marcador (que foram posteriormente digitalizados e invertidos para a impressão em livro); e, na segunda, mais pequena, encontram- se as aguarelas, repletas de cor. Deste modo, fazemos duas viagens.
Há um ano, António Jorge Gonçalves esteve internado no Hospital de S. José e, numa operação de emergência para travar a hemorragia decorrente de uma veia que tinha rebentado no estômago (a que se chama lesão de Dieulafoy), esteve “apagado durante 24 horas”, teve uma experiência de morte. A ideia deste projeto já existia, mas estava bloqueada. Foi no hospital que lhe percebeu o sentido. E não consegue falar muito sobre ele. “Eu sei articular um discurso sobre o meu trabalho”, afirma. “Mas, em relação a este, se começo a articular muito, começo a mentir.”
As 44 imagens denotam uma separação, uma solidão enquanto não pertença. Como se António Jorge Gonçalves visse o mundo de fora, umas vezes de cima, outras ao nível da terra, muitas vezes de frente. Todas são corridas a um mesmo padrão, um traço curto e incisivo, bruto, como se fosse um tecido que as forrasse a distanciamento. À pergunta sobre o que mudou em si, depois desta experiência, diz ser muito difícil de explicar. “Sinto-me mais ‘morrível’ do que tu. A possibilidade de morrer era antes uma estilização, uma abstração intelectual; agora é sentida, sei que posso morrer porque já lá estive.” E é aqui que introduzimos o nome da exposição, assim como do livro: A Minha Casa Não Tem Dentro.
No livro A Minha Casa Não Tem Dentro (editado pela Abysmo) os capítulos que organizam as diferentes séries de desenhos são introduzidos por uma página dupla de quadriculados com a função de vinhetas. Numa delas, lê-se: “Fui ao passado e não me encontrei.”
A Minha Casa Não Tem Dentro > Galeria Abysmo > R. da Horta Seca, 40, Lisboa > T. 21 191 2775 > até 20 mar > seg-sex 10h-13h, 15h-19h