Com o mundo a viver à sombra de uma pandemia, é quase impossível contornar o tema da morte, tão presente nas notícias. Todos os dias se faz a contagem das vítimas, fala-se da necessidade de proteger os mais velhos, repete-se os cuidados a ter quando saímos de casa.
Aos ouvidos de uma criança, a situação pode ser assustadora, com o medo da morte a provocar angústia. Cecília Galvão, psicóloga clínica especializada na área da criança e do adolescente, afirma que o melhor é abordar o tema de forma honesta, garantindo que a criança se sente segura com as explicações que lhe vão sendo dadas.
A partir de que idade as crianças percebem o que significa morrer?
A morte, na sua dimensão total, só é entendida por volta dos 7 ou 8 anos. É a partir daí que as crianças sentem pela primeira vez esse grande tema que é a morte e a sua finitude. Então, vão à procura de respostas junto das suas referências: os pais, a família próxima, a escola e os amigos.
Contudo, a morte não é um assunto muito discutido.
Eu diria que, nos últimos dez anos, este tema desapareceu das conversas que temos com as crianças. Além disso, elas são normalmente excluídas das comemorações ou rituais fúnebres. E, por vezes, os pais nem sequer querem que os filhos os vejam chorar. Mas não devemos omitir o sofrimento, que é o que temos feito ao retirar das nossas vidas os sinais da morte: não há lutos, não há enterros grandes, não há choro. Digamos que a exteriorização da tristeza deixou de ser autorizada socialmente.
Crê, então, que as crianças devem participar nos rituais fúnebres?
Depende dos rituais. Os funerais, seja a cremação ou o enterro da urna, são muito crus. Talvez seja preferível que participem noutro tipo de comemorações, como uma missa ou um jantar de homenagem à pessoa falecida, em que há espaço para manifestar a tristeza. As crianças não devem ser completamente afastadas. Devemos permitir que estejam connosco quando estamos tristes para que percebam que chorar não é dramático, acontece.
Entretanto, devido à pandemia, a morte tornou-se um assunto recorrente nas notícias e nas conversas de todos nós. Isto pode afetá-las?
Ainda é cedo para percebermos o real impacto desta situação nas crianças, mas penso que o facto de termos começado a falar sobre morte e sobre a necessidade de proteger os mais velhos influenciará a forma como elas vivenciam o medo da morte, que, aliás, é normal nesta idade. O que me parece é que, caso as crianças já tenham alguma angústia, esta situação de pandemia e de contagem diária de mortos pode aumentá-la.
Por outro lado, hoje há muitas crianças que são filhos únicos, netos únicos, ou seja, têm muitos adultos e poucas crianças em seu redor. Por isso, o tema da morte pode, naturalmente, levar a mais angústia.
Na sua opinião, devemos poupar os mais novos aos noticiários ou é importante que tenham esse contacto com a realidade?
Penso que as crianças devem ser poupadas às notícias da televisão. Podem ouvi-las na rádio, que é um meio menos agressivo. Antes dos 10 anos, não há vantagem nenhuma em ver os noticiários televisivos. Dou o exemplo daqueles quadros com as contagens diárias dos casos de Covid-19, com números de mortos e infetados: não vejo qualquer vantagem em que as crianças os vejam. Os noticiários devem ser vistos por adultos porque são feitos para adultos.
Mas os temas da atualidade podem ser discutidos em família ou não?
Conversar sobre a atualidade pode e deve ser um assunto, como o que se está a passar nos EUA. Mas tendo sempre o cuidado de os proteger de assuntos que ainda não têm capacidade de perceber.
Que sinais nos podem indicar que uma criança está assustada ou preocupada?
Os sinais são sempre alterações do apetite e dos ritmos de sono. Podem ter mais dificuldade em adormecer, acordar mais vezes ou ter pesadelos, por exemplo. Por vezes, começam também a ter medos que até aí não tinham. Por norma, as crianças, não verbalizam, não dizem “Tenho medo de morrer” ou “Tenho medo que o avô morra”. Mas, se a criança nos trouxer o tema, é importante que o abordemos e lhe demos um contexto que faça sentido para nós – seja religioso, filosófico ou metafísico.
Como podemos tranquilizá-los?
Em vez de os tentarmos acalmar dizendo que não há motivo para ter medo, podemos
começar por perguntar donde veio esse medo, tentando que a criança nos explique
o que sente, mas tendo sempre presente que não vai saber dizê-lo à maneira dos
adultos.
É também importante frisar que ter medo não é uma coisa má, que é normal, e que todos temos os nossos, sejam grandes ou pequenos. Garantir-lhe que podemos contar uns com os outros e conversar sobre isso – ou seja, permitir que o medo possa ser expresso.
E se a criança conseguir verbalizar e disser “Tenho medo que tu e o pai morram” ou “Os avós vão morrer”?
Devemos responder honestamente. Dizer-lhe que ser crescido é aprender a ter medo e a viver com ele. Dar exemplos simples, como: “Tu andas de bicicleta muito depressa, por isso, às vezes cais e ficas com um bocadinho de medo, mas não deixas de andar de bicicleta. Vais, sim, ser mais cuidadoso. Neste caso, também é assim: os avós têm cuidado, usam máscara, etc.”. É importante não evitar o medo, mas contextualizá-lo, relativizá-lo.
O que não devemos nunca fazer quando falamos sobre este assunto com os mais novos?
Não devemos partilhar as nossas angústias, pois temos de ser a segurança dos nossos filhos. Se sinto que o tema da morte é altamente angustiante para mim, então, devo pedir ao outro pai que seja ele a falar sobre isso.
No caso da morte de um dos avós, pode ser mais difícil.
A morte de alguém de quem gostamos é sempre uma perda, mas temos de frisar que, apesar de ter morrido, ele/a vai ficar sempre connosco, porque não o/a esquecemos: continuamos a fazer os biscoitos a avó fazia; a recordar os passeios que o avô dava, as histórias….
Na vida, nascemos, desenvolvemo-nos e morremos. É importante que não retiremos da vida os assuntos desagradáveis ou aqueles que nos entristecem, senão as crianças crescem sem a consciência de que eles existem.
Que consequências isso teria no seu desenvolvimento?
Cresceriam adultos imaturos. Adultos que, em situações de tristeza, não estão lá quando o outro precisa porque não sabem sofrer, porque o sofrimento os devasta. Temos de ensinar aos nossos filhos que há uma dose de sofrimento que faz parte da vida. Claro que gostávamos que os nossos filhos não tivessem sofrimento nenhum, mas a verdade é que se eles perderem um lápis de que gostam muito, por exemplo, sofrem com isso e choram imenso. Se tal acontecer, não convém irmos logo a correr comprar outro, mas sim dar um tempo. Não é necessário dar logo a solução, devemos esperar…
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