É com indisfarçável orgulho que António vê os grupos de forasteiros, muitos deles compostos por famílias inteiras, calcorrearem os trilhos que ele tão bem conhece. No auge da ditadura franquista, ele era um dos maiores contrabandistas da região e conhecia como ninguém estas passagens inóspitas, que ligavam a pequena cidade mineira de Bagà a Andorra. Cautelas antigas levam a que não se revele o apelido ou a provecta idade. Afinal, foi “muitas vezes ameaçado de morte por elementos da Guardia Civil, apesar dos subornos que recebiam”. António contrabandeava especialmente tabaco, “mais o que as pessoas precisassem”, de bens essenciais como azeite ou leite a pneus de trator, numa economia paralela que dava emprego a muita gente. “Só António tinha uma quadrilha com cerca de 30 pessoas”, revela Jordi Calvo, 30 anos, um guia de montanha que regressou à cidade natal para abrir a primeira empresa de turismo da natureza de Bagà, a Guies del Cadí, a funcionar há pouco mais de um ano. “Fui um dos poucos da minha geração a regressar à cidade. A maior parte vai estudar para Barcelona e acaba por ficar lá”, desabafa, enquanto conduz a carrinha da empresa em direção a Vents del Cadí, de onde parte um dos mais bonitos percursos pedestres da região, que acompanha o desfiladeiro do rio Pendis.
Apesar de ser a primeira porta de entrada para o Parque Natural de Cadí-Moixeró e para os Pirenéus catalães, para quem chega de Barcelona, a cidade de Bagà pouco mais foi, durante anos, do que um mero ponto de passagem. Tudo mudou há dez anos, desde que aqui começou a ser organizada a Ultra Pirineu, uma das mais conhecidas ultramaratonas de montanha. Anualmente, sempre no último fim de semana de setembro, são quase dois mil os atletas oriundos de mais de quatro dezenas de países que participam nas provas de 110 e 45 quilómetros, percorrendo estas montanhas de fio a pavio e atraindo milhares de pessoas à região. “As pessoas começaram a perceber que havia um futuro, depois do encerramento das minas, e que ele estava nas montanhas, tal como antigamente”, defende Jordi.
Instituído em 1983, o Parque Natural de Cadí-Moixeró engloba um perímetro de 187 quilómetros, ao longo das províncias de Barcelona, Girona e Lérida. É composto por duas serras, a de Cadí e a de Moixeró, que se estendem ao longo de uma cordilheira de 30 quilómetros de extensão e uma altitude máxima de 2653 e 2537 metros, respetivamente. Um dos locais mais emblemáticos do parque é a singular Pedra Forca, uma montanha que parece rachada ao meio e é conhecida por ter sido um dos berços do alpinismo catalão, sendo hoje também muito procurada por praticantes de escalada. O símbolo do parque é o pica-pau negro, uma das aves mais emblemáticas desta região, a par do galo selvagem e do abutre-quebra-ossos. Quanto a mamíferos, estão registados cerca de seis dezenas de espécies, sendo os mais abundantes as camurças, os cervos e os corços.
Caminhos com história
O parque natural é percorrido por uma grande rota pedestre, circular, que liga entre si oito refúgios de montanha, onde os caminhantes e visitantes podem pernoitar. É o caso do refúgio de Vents del Cadí, um dos mais próximos de Bagà, a apenas cinco quilómetros. Fica a 950 metros de altitude, mesmo no início do imponente Canhão de Empedrats. Alberga 14 pessoas e é dos mais confortáveis de todo o parque, parecendo mais um aprazível turismo rural do que um tosco abrigo de montanha. “Na primavera e no outono, estamos quase sempre lotados”, sublinha o proprietário, Fran Isquierdo, que nos últimos anos tem visto chegar um novo tipo de hóspede, além dos habituais grupos de montanhistas, “composto por famílias e cada vez mais praticantes de trail running”. Jordi sorri ao ouvir estas palavras. Ainda se lembra de quando andava sozinho por estes trilhos, apenas acompanhado por um ou outro amigo, para ir à pesca ou, quando o tempo aquecia, dar um mergulho numas das muitas cascatas.
Hoje, o caminho outrora calcorreado vezes sem conta pelo contrabandista António é atualmente um dos percursos mais concorridos do parque, que nos últimos tempos se tornou numa das mecas, em Espanha, para os adeptos das caminhadas. “Temos mais de 400 quilómetros de percursos sinalizados no parque, que dão para todo o tipo de praticantes, desde os mais novos aos mais experientes”, diz Jordi, que entretanto já começou também a organizar alguns passeios temáticos, como o da Apanha dos Cogumelos ou o da Brama dos Veados, ambos realizados durante o outono, naquela que é, segundo o guia, “a verdadeira época alta” desta região, “quando as folhas começam a mudar de cor e toda a paisagem ganha um encanto mágico”.
A Guies del Cadí vai também em breve implementar algumas rotas próprias, como a Rota do Contrabando ou a Rota do Exílio, que recorda o êxodo, por estas montanhas, dos refugiados da guerra civil para França e, em sentido contrário, dos judeus fugidos dos nazis, durante a Segunda Guerra Mundial. “Este sempre foi um lugar de passagem ao longo da história, porque era o caminho mais rápido para chegar ao outro lado da cordilheira e daí seguir para Andorra e França. Este troço faz até parte do caminho dos Cátaros, uma grande rota histórica que se prolonga até França”, explica o guia, apontando para as pedras, gastas por gerações e gerações destes povos montanheiros, ao longo do rio Pendis e de uma imponente sucessão de cascatas que não deixa ninguém indiferente. Nem mesmo a Jordi, que, apesar de conhecer este território desde sempre, ainda se consegue surpreender, parando, aqui e ali, apenas para apreciar a paisagem. “É talvez o local mais bonito dos Pirenéus Catalães”, desabafa por mais do que uma vez, sempre com o olhar perdido no horizonte.
(Artigo publicado na VISÃO 1286, de 26 de outubro 2017)