Há razões de sobra para se apaixonar pelo Peru: histórias e sítios milenares, adrenalina, sabores, deslumbramentos vários. Se pensar que é “uma vez na vida”, prepare-se: vai querer voltar. É sabido: o Peru já tinha alguns dos lugares mais procurados do planeta, com Machu Picchu à cabeça. Mas começa a cair no goto por outras razões, da gastronomia à movida boémia da capital, passando pela aventura amazónica. Por isso, agora que pusemos o pé neste território latino-americano, com o dobro do tamanho de França e maior do que o Egito, subvertemos o roteiro turístico habitual e viramos a viagem do avesso. Quer isto dizer que o melhor é começar pela jornada na selva, com batimento cardíaco acelerado e sacrifícios à comodidade, até à descontração final em torno da rejuvenescida vida limeña. Vai ver que até acaba a brindar com um pisco sour. No mínimo
AMAZÓNIA – À FLOR DA PELE
Vista de cima, a Amazónia, que cobre mais de metade do território peruano, é um fio de água cor de tijolo a serpentear por vegetação tão densa que até se desconfia que seja atravessada por raios de sol. Depois, ao sair do avião leva-se um “estalo” de calor e um leve sufoco no gasganete. Na verdade, o dia pode começar assim: 32 graus, 80% de humidade. A má notícia é que ainda pode piorar. Mas não desespere, o resto compensa.A viagem do aeroporto de Puerto Maldonado, a porta de entrada na selva, até ao cais de embarque do rio Tambopata, pode demorar meia hora de autocarro. Talvez dê de caras com um Anaconda Lodge, uma carrinha da Piranha tours e gafanhotos tamanho XL, mas não se deixe impressionar: a adrenalina agradece.
Estamos na região que envolve o rio Madre de Dios, com 70 mil habitantes, 93% de área protegida e “sentados” em ouro. Sim, a principal exploração mineira visa o vil metal, deixando um rasto de contaminação nos solos e rios, apesar de todas as leis e vigilâncias. Por isso, nesta zona da Amazónia peruana, apesar de haver mais de 300 espécies subaquáticas, não verá nem uma espinha de peixe nas ementas. Para seu bem.
De bote motorizado até à margem da reserva privada da Comunidade Indígena do Inferno, gerida a meias com a premiadíssima Rainforest Expeditions, conte com meia hora. Talvez tenha a sorte de ver uma capivara, maior roedor do mundo, nas margens do rio. Depois, espera-o uma caminhada de 20 minutos até à Posada Amazonas onde ficará hospedado. Recomendam-se sentidos alerta: cuidado com o que pisa, nada de mexer em ramos ou folhas ao calhas. “A selva é imprevisível”, lembra Marlene Berrocal, a nossa guia. Tarântulas, escorpiões, pequenas serpentes, podem surgir do nada. Sim, o batimento cardíaco aumenta. Mas alto lá: não veio passar a lua-de-mel, pois não? O lodge da Rainforest é um pequeno paraíso no interior da selva. Sobretudo se nunca esquecer que está na selva, claro. A eletricidade é racionada, as refeições são a horas marcadas e os quartos têm camas com rede mosquiteira, abertos ao exterior. Sim, a selva “mora” do lado de lá do colchão. Mas respire fundo: adormecer e acordar com os sons da bicharada é inesquecível e não há grandes sustos a registar. Nos dias de chuva, com a selva intransitável, pode experimentar um dos muitos workshops do alojamento: dança, gastronomia e tatoo. Também ensinam a preparar o pisco sour, mas fica o aviso: a bebida de excelência do Peru, feita de aguardente de uva, deixa a caipirinha a milhas e pode tornar-se um caso sério de devoção.
Obrigatória é a navegação arrastada, suave, em catamarã, no lago Três Chimbadas, ao final da tarde, e a subida a uma torre de controlo de 37 metros de altura, ao amanhecer, para fixar a panorâmica na memória.
O lago é habitado por piranhas e caimões com cinco ou seis metros de comprimento.
Da torre, pode observar várias aves exóticas, mas em ambos os casos não espere que os animais estejam ali especados à espera da fotografia ou do seu olhar extasiado. Isto não é o zoológico da zona nem o bilhete-postal está incluído no preço, convenhamos.
Mas a sorte também brota na selva.
No Três Chimbadas pode lançar a cana do pescador indígena à agua e tentar trazer a piranha pelo isco. Ao princípio da noite, e já de lanterna em punho, pode vislumbrar o olhar de um dos mais temíveis predadores destas águas: o caimão. No regresso, admita a hipótese de uma longa espera no aeroporto, em caso de tempestade tropical. Mas a selva já não sairá de si. Há silêncios de águas calmas, paisagens exuberantes e momentos pele de galinha que jamais esquecerá.
CUSCO – UMBIGO NAS NUVENS
De Puerto Maldonado voa-se para Cusco (“umbigo do mundo” na linguagem quéchua). E agora. como é que se diz isto? Está a ver a mais alta montanha do nosso país, no Pico, nos Açores, uns 2400 metros acima do nível do mar? Pois bem: junte mais um quilómetro a subir e está em Cusco, a capital histórica do Império Inca. Sim, é de ficar tonto. Por todos os motivos.
Para começar, não se ponha com poses de irredutível portuga, do tipo “eu é que sei”: obrigue-se a tomar as pastilhas para a altitude, a mascar umas folhas de coca ou a beber litros de chá da mesma planta. Ou tudo junto, que mal não virá daí. Depois, nada de correrias ou gestos bruscos. À chegada, não sentirá nada. Mas horas depois, de enxaquecas a vómitos e diarreias, pode acontecer-lhe tudo. Ou não.
A prevenção é, de resto, o melhor remédio para tomar conta do seu destino em Cusco.
Tente não ser escravo da pedinchice dos recuerdos mais caros por estas bandas, embora alguns sejam um regalo e não se deixe levar pelas fotos junto da lama trazida por corda por uma velhota andina que logo reclama gorjeta ou pelo ambiente de feira turística, a la Santuário de Fátima, para pior. Concentre-se na História. Nos monumentos (sobretudo na magnífica catedral e na curiosa versão d´A Última Ceia, de Marcos Zapata, ícone artístico da resistência cultural indígena ao invasor castelhano).
Contemple a engenharia e arquitetura cirúrgicas dos incas, as varandas e telhados coloniais, demore-se no templo de Korikancha, e deixe-se ir pelas ruas esconsas que cravaram na pedra milhares de anos de memórias.
Isto, sem deixar de olhar para cima, pois jamais esquecerá este céu azul. Depois, suba até à fortaleza de Sacsayhuaman (ou Sexy Woman, versão oral que os peruanos mais humorados desenrascaram para turista entender). E sobretudo, perceba a diferença cusquenha entre dois muros: “Um foi construído pelos incas e o outro pelos inca… pazes!”, graceja o guia Willy Gamarra, competente cicerone da região. A cidade sagrada tem nove igrejas e templos, dez museus e outros locais obrigatórios.
Se entretanto já fez as pazes com o mal de altitude, pode iniciar-se na aventura gastronómica. A VISÃO amesendou nos restaurantes Pachapapa e no Limo. O ají de galinha toca as nuvens, os ceviches são quase sempre de chorar por mais e a truta, em versão cozida ou grelhada, é rainha por estas bandas. Batatas, prove todas as que lhe servirem até não poder mais (o Peru tem cerca de 3500 espécies, mais de um terço da variedade mundial). Se não for sugestionável, tente-se pelo cuy assado no forno, bem tostado. Em Portugal, é mais bichinho de estimação, mas isso agora não vem ao prato…
perdão, ao caso. A cerveja Cusqueña, sobretudo negra, de cevada maltada, soberba, vai bem com tudo. Mas se quiser armar-se em herói e conhecedor, peça uma Margarito: não é marca, é tamanho. É o nome que se dá à garrafa de litro em homenagem a uma popular figura peruana, da altura de um jogador de básquete.
MACHU PICCHU – SILÊNCIO, POR FAVOR
Se, com o andar da viagem, já carrega noites mal dormidas e o cansaço lhe mói o juízo, beba na estação ferroviária de Cusco, antes da partida para Machu Picchu, um copo de Chicha de Maca (um sole, menos de 25 cêntimos). Arrebita logo e tem outros benefícios para a saúde, pois a planta originária da cordilheira dos Andes previne, diz-se, um vasto cardápio de doenças, da anemia à tuberculose. A maca, porém, deve a sua fama às supostas propriedades afrodisíacas e de estímulo sexual, daí ser conhecida como o viagra peruano. Mas esse é um assunto sobre o qual os indígenas poderão falar, digamos, com mais profundidade.
De Cusco a Aguas Callientes, com percurso pelo Vale Sagrado dos incas e antes de alcançarmos Machu Picchu, vai-se de comboio. Turístico. Dispensava-se a banda sonora ambiente à laia de flauta andina de elevador (será caso para nunca mais querer ouvir El Condor Pasa, nem com guizos), mas a carruagem em versão Vistadome permite desfrutar das quase quatro horas de viagem em modo pasmado, com destaque para a zona de Ollantaytambo, a cidade satélite que protegeu Machu Picchu e mantém algumas tradições e costumes da época dos incas. Rios e riachos, extensos terrenos de cultivo e alpendres naturais, montanhas a perder de vista, rostos farruscos sorridentes a acenar à passagem, eis um pouco do que desejará nunca mais apagar da memória. Depois, do pardieiro de Aguas Callientes (fuja, fuja!) à cidadela de Machu Picchu é sempre a subir, de autocarro. Conte com 20 minutos a pique. No topo, vai sentir a ansiedade em formigueiro, mas antes, é melhor aconchegar o estômago no muito recomendável buffet do Sanctuary Lodge Hotel, simpático mosaico da gastronomia peruana.
Depois, respire fundo, entre e caminhe.
O primeiro pensamento é que não está ali, deve ser engano.
Depois vai ganhando consciência e uma estranha sensação de nuvens debaixo dos pés.
Não vale a pena repetir até à exaustão o que, à distância de um clique, encontrará sobre Machu Picchu nas mais simples brochuras e roteiros turísticos: cidade perdida dos incas, nunca descoberta pelos espanhóis, abandonada à sua sorte até ser reencontrada em 1911, obra-prima da perícia e do saber inca, etc, etc. Perca-se, sim, naquelas pedras, no tracejado milenar que foi erguido, no silêncio e contemplação sagradas do lugar, nos segredos das casas, praças e templos, e deixe-se esmagar pela natureza desmedida e prodigiosa, guardiã de um presépio de “homens titânicos”, passe a alegoria torguiana.
Conte com três, quatro horas, para absorver tudo isto. No regresso, não se admire se entrar num estado de ausência. Vai pensar ter deixado algo de si por lá e desejar ter retardado ainda mais a descida íngreme do vale Urubamba.
LIMA – DÊ-LHE TEMPO
A capital peruana, uma das maiores da América do Sul, não se desvenda à primeira apanha. Não cativa como outras do continente, nem sequer é tão monumental. Lima pede paciência, tempo, descoberta. Não é arrebatamento de chofre. Se busca a história, o circuito colonial, o melhor é demorar-se nas redondezas das praças Mayor e de San Martin e visitar o convento de San Francisco, mergulhando nas respetivas catacumbas e arrepiantes ossários.
Recomenda-se ainda uma visita ao Museu Larco Herrera, onde, através de diversas peças, artefactos e documentos poderá marcar encontro com a memória das culturas dos povos nativos da América “espanhola”, antes de Cristóvão Colombo dar à costa, através de todos os tesouros, vestimentas, rastos e ensinamentos que deixaram.
Imperdível, a galeria de arte erótica, muito procurada, prova de que as sociedades do Peru antigo eram já, também para o caso, bastante inspiradoras e até avançadas.
Uma visita mínima de 48 horas à cidade não ficaria completa sem um pisco sour no bar do Country Club Hotel, em San Isidro, sem uma visita a acolhedora à livraria Virrey e sem uma passagem demorada por Barranco, o bairro boémio de Lima, famoso pelas suas moradias do século XIX, as galerias de arte, museus, bares e tabernas que agitam a movida artística e noturna limeña.
O MATE, museu do peruano Mario Testino, o fotógrafo das celebridades (Madonna, Diana, Gisele Bundchen, entre outras), é obrigatório.
Há uns anos, poucos turistas se convenceriam a ficar mais de uma noite em Lima. Mas a recuperação de alguns edifícios históricos, os mais de 82 museus, os guias que desvendam os segredos da cidade “bizarra” e a moda da comida, tornaram-na incontornável.
A cidade vive uma euforia gastronómica e o país é amplamente citado nos grandes órgãos de informação internacionais pela qualidade, variedade e criatividade dos seus pratos e restaurantes, que ganham prémios enquanto o turista se delicia, por exemplo, com um ceviche e um lomo saltado no Huaca Pucclana, em Miraflores, restaurante colado à imponente pirâmide de barro pré–inca com o mesmo nome. Se visitar um dos muitos mercados de Lima, vai perceber a razão pela qual, à mesa, os peruanos comem também com os olhos. “Os tours gastronómicos já estão muito na moda”, garante Marco Arrelano, da Llama Trip. “Franceses, americanos e italianos são os que mais procuram esses circuitos”. Resumindo: é provável que Lima comece por conquistá-lo pelo estômago, mas não tardará a embriagar-lhe os sentidos. Dê-lhe tempo.
GUIA DO VIAJANTE
- PERU, VERSÃO LUXO – A Air France e a KLM voam para Lima dez vezes por semana, com ligações a partir de Lisboa. O voo (ida e volta), em classe Executiva Business da Air France ou em World Business Class da KLM, custa 3015 euros, mas dá direito a vários luxos antes durante e depois do viagem: serviço limusine num raio de 50 quilómetros para levar e/ou trazer do aeroporto, comodidades principescas a bordo e lugar garantido – e gratuito – no lounge VIP das duas companhias em Paris e Amesterdão. No Peru, a agência Llama Trip (www.llamatrip.com) propõe um itinerário de cinco noites/seis dias por cerca de 2900 euros: (inclui transportes de e para o aeroporto; duas noites no Country Club Lima Hotel; uma noite em Cusco (Casa Cartagena); uma noite no Vale Sagrado (Resort Aranwa Valle Sagrado); uma noite na Rainforest Expedition Posada Amazonas (Puerto Maldonado, na selva amazónica, com refeições incluídas); todas as refeições em Lima, Cusco e Vale Sagrado; passagens aéreas internas nos troços Lima-Cusco-Puerto Maldonado-Lima; tours turísticos em Lima e Cusco;)
- PERU, VERSÃO ECONÓMICA – Os voos da Air France e da KLM para Lima, em económica (ida e volta), custam 1085 euros. No terreno, a Llama Trip tem também uma versão mais poupada do itinerário de cinco noites/seis dias, em alojamentos de três e quatro estrelas por cerca de 1800 euros.