A pergunta era se eu não sentia orgulho quando chegava ao cabo da Boa Esperança. Orgulho de ser português.
Hesitei. Vou ser franco ou não? Dou uma resposta de circunstância e vaga, ou entro na questão a fundo? Viajar por muito tempo tem esta consequência: adquire-se um certo relativismo.
Fica difícil aceitar os dogmas e os mitos propagados na pátria ao longo de gerações.
Visitamos outros países e ficamos a saber que os nossos dogmas e mitos valem tanto como os deles.
Por exemplo, referia eu, aqui, nestas páginas, há algum tempo, que, para os servos, a batalha do Kosovo, que impedira a conquista de Viena pelos otomanos, era o marco histórico mais importante na definição da identidade europeia seríamos todos muçulmanos, agora, sem esse sangue sérvio derramado. E um português não poderia dizer exatamente a mesma coisa o marco histórico mais importante na definição da identidade europeia sobre a passagem do cabo da Boa Esperança e consequente descoberta do caminho marítimo para a Índia?
Esse formidável promontório, no fundo de África, é um ponto de referência impressionante quer para os que o alcançam por terra quer para os que o contornam por mar. Aliás, recordo a minha desilusão quando o visitei pela primeira vez, por encontrar um dia de mar calmo e translúcido, de céu cristalino e brisa suave, que nada fazia supor ser ali o lugar do mito do Adamastor. Mas em visitas seguintes, as coisas cósmicas alinharam-se de maneira a poder assistir a tempestades brutais de mar e vento sobre o cabo que por nós foi pela primeira vez dobrado.
A pergunta era se eu sentia orgulho. De ser português no cabo da Boa Esperança.
Não. Passaram muitos séculos. O que eu não consigo deixar de sentir é uma perplexidade incomodada. Onde foram parar esses homens que estavam na vanguarda do seu tempo? Onde foram parar o arrojo e a antevidência da raça que soube dar novos mundos ao mundo? O meu incómodo é ainda maior, se viro as costas ao cabo e regresso à cidade, talvez a mais cenográfica e apetecível de todas as cidades fora da Europa, e penso que podia ser uma cidade de ascendência portuguesa, mas que simplesmente deixámos que os holandeses ficassem com ela. A Cidade do Cabo, Cape Town, a “Taverna dos Mares”.
Na realidade, para contornar África, não basta dobrar o cape of Good Hope, há outro mais a sul e que marca, esse sim, o final do continente o cabo Agulhas. Não é impressionante.
Não tem uma falésia a pique sobre o mar, nem um miradouro preparado para rasgar o infinito nem sequer um posto de turismo com os gadgets e souvenirs da ocasião apenas um acidente de relevo lacónico e definitivo, no litoral. Extraordinária, pelo contrário, é a estrada de aproximação ao cabo Agulhas, que atravessa dezenas de quilómetros de terra desolada e premonitória, como se nenhuma outra paisagem fosse digna de anunciar esse iminente fim de mundo que é o cabo Agulhas.
Uma placa rasa informa que, neste ponto, se encontram os dois oceanos: Atlântico e Índico. As rochas são recortadas e pontiagudas, vagamente como agulhas e pareceu-me estar explicada a razão do nome do cabo. Mas não era nada disso.
Os navegadores portugueses descobriram que o norte geográfico, aquele indicado pela Estrela Polar; e o norte magnético, indicado pelas agulhas das bússolas, coincidiam na passagem deste cabo. Daí o nome Agulhas.
Ao contrário do cabo da Boa Esperança, cujo nome foi traduzido em todas as línguas, o cabo Agulhas mantém a grafia original do batismo português. É esse, talvez, o meu motivo de orgulho, não pelo que fomos e deixámos de ser, mas pelo que encontrámos e demos a conhecer. E deixámos nomeado.
Neste caso, nada de “cape Needles”, antes, qualquer coisa como “cape Agâolas”.