Que tipo de cidade seria Lambaréné? Teria um hotel, um restaurante, uma cerveja fresca? Teria electricidade? No mapa, parecia ser uma das cidades mais importantes do Gabão, mas entre a África que os mapas anunciam e a África que depois se concretiza, vai uma distância suspeita.
Por exemplo, esta estrada que ligava o Congo ao Gabão: no mapa aparecia como uma artéria internacional, logo uma via de comunicação importante. Na realidade, o camião seguia por uma pista de buracos e poeira através da selva equatorial – uma viagem de dois dias num veículo decrépito sem janelas, sem amortecedores, sem salvação. Daí a minha urgência em chegar a uma cidade importante, descansar num bom hotel, comer uma refeição decente, tomar um banho.
Quando a carrinha me depositou na praça central de Lambaréné, Gabriela tentava atravessar a rua. Delicada, elegante, branca – uma europeia com evidente falta de jeito para furar o caótico trânsito africano. Concluí: “Uma turista.
E onde há turistas, há hotéis. Lambaréné deve ser uma cidade civilizada”. Parte das minhas conclusões estava correcta: Lambaréné era uma cidade civilizada. Civilização no seu melhor. Mas Gabriela não era uma turista. Muito pelo contrário. Era, também ela, civilização no seu melhor.
“DESDE SEMPRE TIVE ESTE PROJECTO de passar uma temporada em África como voluntária, mas também desde sempre tive a noção que só o faria quando me sentisse preparada profissionalmente”, explica-me Gabriela Oersch enquanto me mostra as instalações arejadas do Hospital Dr. Albert Schweitzer. Conto-lhe que a imaginei turista perdida em África, rimos sobre a infalibilidade das minhas intuições.
Afinal, de nós dois o mais turista sou eu. Gabriela tem 30 anos, é uma pediatra suíça e trabalha no Hospital do Cantão de Lucerna. Conseguiu organizar a vida e a carreira de maneira a poder realizar o sonho antigo de ser útil e desinteressada em África. Civilização no seu melhor. Gabriela explica-me um ponto importante da sua opção: “Podia ter vindo ainda durante os estudos, ou mesmo no final da licenciatura. Muitos colegas meus fazem isso, para adquirir, enfim, experiência e curriculum. Mas por uma questão de honestidade moral, decidi que só trabalharia em África quando a minha contribuição fosse realmente válida.
Quando pudesse dar o melhor de mim mesma”. Apesar de estar como voluntária, Gabriela deixou claro junto da direcção que não queria nenhum tipo de privilégio. Vinha para viver e trabalhar nas mesmas condições dos médicos africanos do hospital. “Estou a substituir colegas em férias. Vou rodando um pouco por todas as especialidades”, acrescenta.
O HOSPITAL SCHWEITZER SERVE A POPULAÇÃO das províncias centrais do Gabão. Embora seja uma fundação privada, é uma instituição de utilidade pública sem fins lucrativos. Parte do orçamento é suportado pelo estado gabonês, parte pelas várias associações Schweitzer espalhadas pelo mundo, parte ainda pelas doações de privados.
Gabriela não sabia da existência do hospital. Na Internet descobriu que precisavam de médicos voluntários, pesquisou mais sobre a obra e a vida do doutor Schweitzer, e o que descobriu chegou-lhe: organizou a vida de maneira a poder permanecer aqui por seis meses.
Albert Schweitzer chegou em 1913 a este mesmo sítio onde agora converso com Gabriela. Sabia já que vinha para ficar. A sua vocação evangélica da juventude convertera-se, com a maturidade, numa missão existencial mais pragmática e útil. Tirou uma licenciatura tardia em medicina, depois de estudos em Teologia, e chegou a Lambaréné com intenções bem claras: trazer a ciência europeia ao coração da selva equatorial, construir um hospital, servir o próximo em África. Durante cinquenta anos, até à sua morte em 1967, Albert Schweitzer perseguiu com elevada dedicação o seu ideal humanitário no pequeno hospital na selva. O Doutor Branco de Lambaréné foi aclamado como um dos homens do século, foi amigo de Einstein e Eisenhower, recebeu de presente do príncipe Rainier a sala operatória, ganhou o Prémio Nobel da Paz em 1952. Era também um excelente intérprete de Bach, dava regularmente concertos de música clássica na orla da floresta, na margem do rio. O seu piano, o seu órgão, as suas partituras, os seus discos, encontram-se ainda em exposição no antigo edifício do hospital, hoje um museu que recentemente se candidatou à lista do Património da Unesco.
Uma energia bondosa, serena, luminosa parece flutuar neste oásis de civilização debruçado sobre o rio Ogooé, rodeado pelo silêncio impenetrável da selva húmida e misteriosa.
Gabriela parece-me em estado de graça. Quem não estaria, ao realizar um velho sonho humanitário num lugar tão bonito? Pergunto-lhe se poderia viver permanentemente aqui. “Acho que não.
Seis meses chegam. Estou bem aqui, mas não poderia abandonar a Europa. Sinto falta de todas as coisas que só a vida nas cidades ocidentais pode dar. Por exemplo, um concerto de música clássica” E conclui, sorrindo: “É que, ao contrário do doutor Schweitzer, eu não sei tocar Bach”.