Para a maior parte dos moradores da Graça, José María Cano, 60 anos, não passará do excêntrico vizinho espanhol que, há dois anos, comprou um palacete seiscentista no bairro alfacinha e, para resguardar a sua privacidade, embargou uma obra da EMEL. É que do alto do último piso do novo parque de estacionamento da Rua da Verónica tem-se uma panorâmica sobre os jardins do Palácio Teles de Meneses, a fazer esquina com as ruas de S. Vicente e da Voz do Operário. Lugar ideal para espreitar as sofisticadas festas realizadas nos jardins, em que comparecem os socialites do país vizinho. Ou simplesmente para estacionar o carro.
Já para os espanhóis com mais de 30 anos, José María Cano fez parte do maior fenómeno da música pop espanhola: os Mecano. O trio, formado com o seu irmão mais novo, Nacho Cano, e a namorada da adolescência, Ana Torroja, vendeu cerca de 25 milhões de discos em todo o mundo, entre 1981 e 1992, recorde impensável para um grupo a cantar em espanhol. Na altura, o príncipe Felipe, atual rei, e as infantas, tornaram público o seu gosto pela banda que vestia roupas a lembrar os Spandau Ballet, e chegou a ter um carro com o seu nome, o Renault Clio Mecano.
Por cá, a popularidade do músico pop, agora virado para árias clássicas e obras de arte, não deverá chegar para sensibilizar os moradores de uma zona da cidade que peca por falta de lugar para os automóveis. Sem garagens nos prédios, as ruas estreitas são escassas para tantos veículos, quer de moradores quer de quem visita o bairro onde se realiza a secular Feira da Ladra. Para já, estão 124 pessoas à espera de vaga para uma avença no parque de estacionamento, que abriu em novembro de 2018 o piso 0, mas mantém parte do piso superior encerrado, com várias telas a taparem a vista sobre o palacete do espanhol. Depois de uma primeira denúncia à autarquia, que abriu um processo para estudar a alteração do projeto arquitetónico (ainda sem conclusão), José María Cano interpôs também uma providência cautelar no Tribunal Administrativo de Lisboa para encerrar este serviço público e que ainda aguarda decisão. A verdade é que, em 2017, quando Cano comprou o palácio por €3,5 milhões não havia ali nenhum parque de estacionamento e o que se passava nos jardins ficava nos jardins.
Em 2015, o imóvel do século XVII, com dois mil metros quadrados de jardins, já tinha sido posto à venda por 7,8 milhões de euros. Mas, dois anos mais tarde, José María Cano comprava-o por metade do preço. Com residências também em Londres e em Malta, o músico não se mudou para Lisboa, mas, desde então, tem organizado sumptuosas festas na casa onde guardará parte da sua coleção de arte particular. Em maio do ano passado, o baile de máscaras veneziano coincidiu com a Feira Internacional de Arte Contemporânea, a ARCO Lisboa, noticiava o El País. Os convidados foram transportados em autocarros num circuito dedicado à arte, numa noite com os museus abertos e muitas vernissages. Às senhoras não foi permitido usarem saltos altos para não danificar o chão, e ninguém podia fotografar o palácio. A comida servida era portuguesa, mas a equipa era espanhola. Ouviu-se bossa nova enquanto o jantar foi servido e, à medida que a noite se adiantava, as máscaras caíam e viram-se os rostos de uma elite que compareceu em peso: a empresária Nuria March (foi casada com um neto de Franco), Manolo Ruiz de la Prada, a modelo Mar Flores, os Falconieri, o ator Joseph Fiennes, a escritora Carmen Posadas ou o embaixador espanhol em Portugal à época, Eduardo Gutiérrez Sáenz de Buruaga.
O caminho para a pintura
Apesar de ter bom traço, José María Cano sempre quis ser músico. Obrigado pelos pais, ainda frequentou dois anos do curso de Arquitetura, em Valência, mas depressa regressou a Madrid para seguir a sua vocação. Em 1981, quando ninguém dava nada pelo jovem trio, a editora CBS assinou um contrato com os Mecano para um único single, que entraria, no ano seguinte, no álbum de estreia homónimo. A partir do verão de 1988 – com o lançamento de Descanso Dominical, álbum que vendeu 1,5 milhões de cópias –, para evitar egos inflamados dos irmãos Cano, a editora decidiu que ambos teriam o mesmo número de composições em cada disco, gravando sempre em separado. “Passámos de diferentes e complementares a opostos e difíceis de conciliar”, afirmou José María ao jornal El Mundo. No auge da carreira dos Mecano, em 1993, e sem ninguém esperar, José María anunciou em público – e para surpresa do irmão e de Ana Torroja – que estava de saída do grupo. Hoje, tem um discurso mais ponderado: “Eu próprio, que já começo a fazer muitos balanços, pergunto-me se a excitação que as vanguardas despertaram na minha juventude foi legítima ou mera pedantice.”
Em 2002, dez anos após o fim dos Mecano, José María ainda compôs o hino para o centenário do Real Madrid, mas acabou por trocar a música pela pintura. Ao mesmo tempo, teve de lidar com um divórcio conturbado com a mãe do seu único filho. A hospedeira de bordo acusou-ode maus-tratos, contou histórias duras ao juiz e pediu muito dinheiro, mas o músico conseguiu a guarda partilhada de Daniel, com síndrome de Asperger. Graças ao filho,hoje com 23 anos, que também se dedica à música, José María Cano começou a cantar árias clássicas, enquanto Daniel as tocava ao piano. Depois de ter tido aulas de canto, passou de barítono a tenor, na idade em que a maioria dos tenores para de cantar.
No mercado da arte, os quadros assinados por Cano de Andrés, novo nome artístico, valem centenas de milhares de euros. A Sotheby’s vendeu a sua obra God Save the Queen por cerca de €72 mil e o retrato do magnata chinês Jack Ma ultrapassou €370 mil. Até há dois anos, José María já tinha participado em 37 exposições, 20 das quais em nome próprio, mas, por sinal, não é em Espanha que tem mais reconhecimento. No seu país há apenas um mural (retrato da histórica feminista Clara Campoamor) no Senado e, em 2010, a Fundação Picasso, de Málaga, pendurou os seus trabalhos tauromáquicos ao lado dos de Goya e de Picasso. As pinturas de Cano tratam vários temas: violação dos Direitos Humanos, prostituição ou o mundo financeiro, mas também os desenhos infantis do filho. “Trabalho na margem entre o real e o verdadeiro. Mais do que a História em si, o que interessa ao meu trabalho é a diferença entre o que aconteceu e a versão conclusiva da História.”
Este ano, na primavera, um álbum de tributo e uma biografia do grupo, projetos de Javier Adrados, lembraram o trigésimo aniversário da edição do álbum Descanso Dominical. Ao El Mundo, sobre um eventual regresso dos Mecano, disse: “Prefiro não especular sobre o futuro e viver sem desejos nem medo.” Um desejo, pelo menos, tem: que a Graça continue sem o tão almejado parque de estacionamento.