Um dia, Joacine Katar Moreira escreveu um poema à mãe: “Minha mãe, o teu vestido negro, aquela cor, a cor do teu coração, aquele tecido fino e delicado como tu. O teu peito chora, a tua alma grita, o teu corpo esmorece. Eu chorei contigo, eu gritei contigo, eu morri contigo, e tu nem reparaste.” Provavelmente, o leitor está a pensar o mesmo que os jurados que deram a Joacine dois ou três prémios literários por estes versos: que era uma bela homenagem à progenitora. Mas Elsa, a mãe, não podia ter odiado mais: “Ganhei os prémios porque todos acharam que a minha mãe tinha morrido. E ela, ali cheia de juventude, ia morrendo quando o leu. ‘Que horror, falas de mim como se estivesse morta!’ Detestou, disse que eu não gostava dela.” Era um poema demasiado negro e invulgar para uma pré-adolescente de 13 anos, como quase tudo o que então escrevia: “Não eram poemas sobre o Sol ou como o dia estava lindo. Era tudo demasiado hardcore”, confirma à VISÃO.
Na época, Joacine estava longe de ter ambições políticas ou de despertar para o ativismo. Vivia numa instituição – a Casa Mãe do Gradil, em Mafra –, sonhava ser escritora e escrevia uns diários filosóficos aos quais dava nomes, enquanto pelos seus cadernos ia deixando textos e poemas como a Ode à Minha Cor Negra. A fixação pelo negro seria, anos mais tarde, transportada para os seus cartazes de campanha para as legislativas, em que aparecia vestida de escuro sobre um fundo negro, contrariando as recomendações dos especialistas em comunicação política, ou, ainda antes disso, para as Conversas às Escuras, que organizava todos os meses no instituto que fundou – o INMUNE, o Instituto da Mulher Negra em Portugal – e onde juntava uma série de mulheres à conversa, no escuro, e lhes servia alimentos igualmente escuros, como chocolate, passas ou azeitonas pretas.
Bastam umas horas de conversa com a deputada do Livre para perceber que é uma mulher marcada por episódios que sentiu como sendo de discriminação. Não que tenha sofrido racismo descarado. “Eram coisas muito subtis. Ao contrário do que vemos hoje nas caixas de comentários, o racismo em Portugal era muito difícil de comprovar”, explica. Não se esquece de ter ido a um restaurante com vista para o mar, de se sentar numa mesa na primeira linha e de o responsável vir dizer-lhe que ia arranjar outra “mais discreta”. Nem de tirar 19 no 1º período, mas a professora baixar-lhe a nota para 16, “com a desculpa de que a seguir não teria de descer. Como se fosse impossível para uma menina como eu manter aquelas notas altas…” Ou de como o familiar de uma das suas melhores amigas disse à sua frente “Até a Joacine conseguiu!”, quando foi escolhida para um emprego e essa amiga não. “Sempre tinha sido impecável comigo, mas de repente todo aquele racismo estrutural veio à tona. É este o típico racismo português. Não é algo que seja óbvio, mas tira-nos oxigénio.”
Joacine nasceu na Guiné-Bissau, em 1982, e é a filha mais velha de 11 irmãos: sete da parte do pai, três da parte da mãe. Se há exemplo que gosta de dar para mostrar que diferentes contextos geram diferentes oportunidades é o da própria família: se, por um lado, os filhos do pai cresceram em Alverca e estudaram numa boa escola pública e hoje ou são licenciados ou frequentam o Ensino Superior, as irmãs do lado da mãe cresceram no Vale da Amoreira, num bairro social da Margem Sul, e ficaram pelo 12º ano. “São educadas e trabalhadoras. Não são em nada piores do que os meus irmãos, mas foram criadas num bairro social que funciona como uma ilha de desigualdade. O meu irmão em Alverca conseguiu estudar Informática no Ensino Técnico-Profissional e a seguir foi para a faculdade. Sabe quais eram as oportunidades das minhas irmãs no Vale da Amoreira, nesse tipo de ensino? Nada que tivesse continuidade para a faculdade: era serem cabeleireiras, barmen ou jardineiras.” Foi nesta fase que decidiu entrar no ativismo e na militância. E é esse o discurso que tem tentado pôr na ordem do dia desde que foi a primeira mulher negra a ser eleita como cabeça de lista por um partido. Os seus posts, tweets e intervenções públicas transformaram-na numa das figuras mais comentadas do País e numa das que mais dividem opiniões: se há quem defenda que é necessária uma voz para estas causas, outros há, mesmo dentro da esquerda ou do próprio partido, que não se reveem num discurso tão radical.
As guerras internas
As polémicas atingiram o pico quando Joacine Katar Moreira se atirou a Daniel Oliveira no Twitter, na sequência de um artigo no Expresso, em que o comentador criticou a aposta da deputada em fazer política de forma “demasiado pessoal”. “Daniel, a sua postura, embora mais polida e mascarada de bom senso, não tem sido muito diferente da de muitos associados à direita e sua extrema na procura de descredibilização constante do Livre e da minha escolha como cabeça de lista”, ripostou a parlamentar.
Até entre a direção do partido a postura de Joacine está a causar cisões. Fontes ouvidas pela VISÃO admitem que o silêncio que o fundador Rui Tavares (contactado pela VISÃO não respondeu antes do fecho) vinham mantendo nos últimos tempos era sintomático. “Ele não tem nada que ver com esta mensagem”, diz um membro do partido, lamentando que as temáticas do europeísmo e da ecologia estejam a ser relegadas para segundo plano e “esmagadas” por questões como o racismo ou o feminismo. Nas cúpulas do partido, há quem acuse Joacine de se ter tornado “dona da agenda” do Livre, definindo a representação parlamentar à sua imagem e semelhança. Um exemplo: no fim de semana em que a deputada e Daniel Oliveira trocaram “mimos” no Twitter, o Livre emitiu um comunicado sobre o aeroporto do Montijo, que passou ao lado de quase toda a gente. No Grupo de Contacto (órgão de gestão política quotidiana), existia já alguma saturação por o partido ter de estar permanentemente a “apagar fogos”. E se é certo que já existia uma task force (com elementos do Grupo de Contacto, Joacine e o assessor Rafael Esteves Martins) que se reunia pelo menos uma vez por semana para definir a agenda, não é menos verdade que se iam fazendo críticas em surdina aos tiques absolutistas da deputada – desde a prerrogativa de escolher as quatro pessoas que a apoiam no gabinete parlamentar até à intransigência em ouvir os conselhos da direção do Livre. De resto, as fricções vêm de trás. Ainda antes da campanha, Joacine terá exigido aparecer sozinha nos cartazes. A ideia dividiu a direção e não vingou por completo. Alguns outdoors só tinham o rosto da candidata, noutros aparecia acompanhada pelo número dois em Lisboa, Carlos Teixeira.
Porém, foi num tom de voz pausado que Joacine respondeu às críticas que lhe têm sido feitas pelos membros do próprio partido. São eles, notou, “que escolheram uma ativista, académica, feminista, que passou os últimos anos a dar palestras sobre igualdade, racismo e colonialismo. Uma mulher que gagueja, de origem africana, que não se inibe de dizer o que pensa”. Mas “obviamente”, reconheceu, o partido “não é homogéneo e nem todos pensam da mesma maneira. Sei que há pessoas que acham que devia estar lá outro e não eu, ou que não deveria falar sobre isto ou aquilo. Mas eu digo-lhes: ‘Todos se candidataram [às primárias] e a escolhida fui eu. Respeito o programa de um partido libertário, ecologista, progressista, mas a minha ótica não tem de ser igual à vossa.’” Aos que a acusam de excesso de mediatismo, respondeu que não o procura nem o esperava, e desabafou: “Deveriam preocupar-se antes com o excesso de ódio.”
A bolsa recusada
O currículo académico é um dos trunfos que Joacine e os seus apoiantes usam quando as qualidades da deputada são postas em causa. E, de facto, o percurso da representante do Livre impressiona. Licenciou-se em História Moderna e Contemporânea no ISCTE-IUL, em 2005, tirou o mestrado, na mesma faculdade, em Desenvolvimento, Diversidades Locais e Desafios Mundiais: Análise e Gestão, em 2009, e doutorou-se em Estudos Africanos no mesmo estabelecimento de ensino. Pelo meio, a deputada fez cursos e especializações em temáticas como o voluntariado, desenvolvimento e intervenção social e igualdade de género. Assinou vasta produção científica e participou em conferências sobre questões étnico-raciais e de género, bandeiras que também no plano político não tem parado de agitar.
Porém, Joacine sofreu um revés no final do ano passado, quando se candidatou a uma bolsa de pós-doutoramento, no âmbito de um projeto do Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina (CEsA), e não ficou com a vaga. O júri, composto pelos docentes Iolanda Évora, Inocência Mata e Cristina Santinho decidiu levar três candidatos a uma entrevista final. Entre eles estava Joacine, que obtivera uma classificação de 75 por cento. Só que, em novembro de 2018, na sala 104 do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), a agora deputada do Livre não terá conseguido “demonstrar, ao longo da entrevista, ideias claras quanto à sua participação no projeto”, concluíram os jurados na ata, criticando que Joacine não tivesse “tomado em conta qualquer dos quatro tópicos especificamente solicitados para a entrevista (pois nem sabia a que tópicos o júri se referia)”. Os jurados não se inibiram ainda de frisar que Joacine não tinha conseguido desenvolver as ideias no tempo devido, embora este tivesse sido “mais generoso devido à particularidade da candidata”.
Confrontada com este episódio, a deputada admite: “Passei um ano traumatizada com essa ata.” Achou-a cruel. Todas as juradas eram suas amigas, e Inocência Mata até tinha estado no seu casamento uns anos antes. A esta distância reconhece, no entanto, que não esteve à altura de uma entrevista “muito complicada”: “Não estive ótima. Não correu bem.”
Se reparou no pormenor do casamento, este não é um detalhe irrelevante na biografia da representante do Livre. Joacine é divorciada e tem uma filha de três anos, Anaís Leonor. Primeiro, casou-se na conservatória com o ex-marido. Depois, casou-se pela Igreja. “Para irritação das minhas amigas feministas, digo que preciso de alguma incoerência na minha vida.”
A gaguez
Joacine é gaga desde que se lembra, mas raramente viu a gaguez como um obstáculo. A culpa é em grande parte da sua avó paterna, Maria Leonor Barbosa, que a criou em Bissau antes de a ter enviado para Portugal para estudar no colégio em Mafra, quando tinha oito anos. Sempre que Maria Leonor entrava em casa, sentava a neta ao seu colo e dizia-lhe: “Então conta-me lá como foi o teu dia.” Joacine inventava histórias, gaguejava, fechava os olhos e virava a cabeça com os seus trejeitos. A avó ria-se com aquela que era “a melhor gargalhada do universo”, dizia que a neta tinha uma voz maravilhosa e uma entoação que a acalmava. “Nunca imaginei que tantos anos depois ia estar a sofrer tanta violência por causa da minha gaguez.”
Quando nasceu, a mãe de Joacine, Elsa Katar, tinha 19 anos, o pai, Joaquim Moreira, apenas 18. Ambos gostavam de festa e passavam a vida em matinés dançantes. Não pareciam desenhados para cuidar de filhos. “Eram iguaizinhos um ao outro. Se o meu pai abotoa as calças, a minha mãe abotoa a camisa. Onde o meu pai ia, ela também ia. Apesar de eu ter nascido, a minha mãe não admitia que os programas dele não a incluíssem.” Quando tem três anos, os pais separam-se e a avó implora para ficar com a neta. É assim que Joacine passa a viver com a avó Maria Leonor, numa casa em que eram educados filhos, netos e sobrinhos, e onde as responsabilidades eram repartidas por todos. “A minha era regar as plantas. Tinha de garantir que elas não morriam e vivia alarmada com isso.”
Maria Leonor, filha de um cabo-verdiano e de uma guineense, fez um curso de enfermagem quando já tinha dois filhos. Nunca quis sair da Guiné-Bissau, onde dizia fazer mais falta como enfermeira do que em Portugal. Apesar da proximidade entre avó e neta, Maria Leonor estava sempre a poupar para mandá-la para a Europa. “Dizia-me que o que iria dar a independência a uma mulher nunca seria um homem.” Ou não se tivesse ela divorciado do marido quando tinha apenas 20 e poucos anos e dois filhos nos braços. Casara-se aos 16, em festejos que duraram uma semana, com Joaquim Moreira, descendente de José Mendes Moreira, um africano que subiu alto na administração colonial e chegou a ser condecorado pelo governo português. “A minha família fazia parte dos civilizados, dos que tinham BI e podiam circular pelo território”, conta Joacine.
A história do nascimento do seu pai não é menos surpreendente. Joaquim Moreira sobreviveu ao seu próprio nascimento, em casa, a 1 de fevereiro de 1964, depois de Maria Leonor entrar em trabalho de parto no meio dos bombardeamentos entre o PAIGC e as tropas portuguesas. Enquanto o edifício ao lado explodia, o pai de Joacine nascia sem chorar, com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. Um ano depois, sobreviveria também a uma operação complicada a problemas respiratórios, por médicos cubanos. As circunstâncias, conta Joacine, terão levado a avó a desculpar tudo o que o pai fazia. “Quando as minhas madrastas iam lá queixar-se de alguma coisa, ela dizia: ‘Deixem lá o meu filho, ele nem era para estar vivo!’” Joaquim Moreira era e é um bon vivant. É o pai que gosta de mulheres e de festas e que vai com as filhas para as discotecas. Esse comportamento não inspirou confiança à avó, que preferiu mandar Joacine para o colégio do Gradil, para onde um ano antes enviara uma das filhas e onde a deputada viveria até aos 15 anos. Aos oito, Joacine estava contente com a mudança. Na altura, os guineenses andavam eufóricos com a telenovela Roque Santeiro, que andava a passar na TV. A deputada confundiu tudo, e depois de passar meses a ouvir falar do Gradil convenceu-se de que estava a caminho do Brasil. Em vez disso, quando chegou ao Gradil, em outubro de 1990, foi recebida por “um dia de nevoeiro, humidade gigante, frio insuportável”. Mas deslumbrou-se com o tamanho da vivenda, com as meninas a brincarem, o salão de brinquedos monumental e a atenção das Irmãs Dominicanas da Anunciata que falavam com ela em espanhol e para as quais haveria de ser, a partir desse dia, a Rrroaciné.
Era uma casa de regras. Não podiam comer ou ir à cozinha depois das 20 horas. Tinham de deixar a cama impecavelmente feita, caso contrário teriam de fazê-la outra vez. Não podiam usar minissaia nem blusas de alças. Só t-shirts com mangas até ao cotovelo e saias pelo joelho. Por isso era normal ver as colegas aproveitarem o dia da missa para vestirem coisas mais arrojadas. Coisas de que, claro, as Irmãs não gostavam. “Gritavam: ‘Ai que pareces uma Mariquita Perez! Mariquitá! Mariquitá!’ Devia ser um grande insulto, mas até hoje não sei quem era a Mariquita Perez!” (Era esse o nome de uma célebre boneca espanhola.)
Dentro do colégio a gaguez nunca foi impedimento para nada. “Eu é que ia à igreja ler e fazia as apresentações das festas de Natal aos benfeitores. Sem vergonha nenhuma”, recorda. Ainda hoje, se rezar uma ave-maria, como fez à nossa frente, as palavras saem-lhe escorreitas, sem qualquer tipo de hesitações. Não sabe explicar porquê, mas não gagueja quando reza. Os primeiros anos foram tempo para devorar livros. Ainda se lembra do primeiro: A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis. Passou um ano de volta dele. À terceira tentativa, agarrou num dicionário e numa folha em branco onde escreveu: “Palavras difíceis.” “Nem imaginam a excitação que era eu não saber o significado de uma palavra.”
Se para a maior parte das colegas, tiradas aos pais biológicos pela Segurança Social, o colégio era uma prisão, para Joacine era um luxo quando comparado com o rés do chão esquerdo no Bairro do Bom Sucesso, em Alverca, para onde entretanto se mudara o pai com a madrasta. Era um T3 espaçoso, só que transformado naquela época num centro de acolhimento de amigos guineenses que ali ficavam uns meses, enquanto trabalhavam nas obras ou nas limpezas e poupavam para arrendar um quarto. “Era uma família em cada quarto, mais uma família na sala. Camas na cozinha, camas no hall.”
A adolescência em Alverca
Aos 15, Joacine fez as malas e foi viver com o pai, a madrasta e alguns dos irmãos para Alverca. É, então, no rés do chão esquerdo da Rua 25 de Abril que experimenta a verdadeira liberdade: “Era a única adolescente que podia ir onde desejasse. Todas as minhas amigas tinham de inventar mil desculpas para sair de casa, eu não. Se o meu pai chegasse e me visse a ler no quarto dizia logo: ‘O que estás aqui a fazer fechada no quarto? Vai mas é para o ringue, é lá que estão as pessoas da tua idade’!”.
Um ano depois de chegar a Alverca, Joacine muda-se para a Escola Gago Coutinho, onde fará todo o Ensino Secundário na área de Humanidades e com notas acima da média. Torna-se delegada de turma e mostra uma postura de liderança. Escreve poemas para o jornal da escola e canta – e bem – para as amigas, com as quais forma um grupo de sete e com quem ainda hoje se encontra para jantar. Tratam-na por Tchiny. Cristina Craveira, uma do grupo das sete amigas, recorda-a como uma pessoa justa, que resolvia e fazia tudo com urgência e era muito madura para a idade. “Lembro-me de fazermos queixa dos namorados e de ela nunca nos passar a mão pelas costas. Dizia sempre o que pensava, não falava para agradar.” Era, também, a mais conciliadora do grupo e a mais querida no círculo de professores. “Era muito interessada. Tinha muitos mais recursos intelectuais do que nós. Os professores de Português e de Filosofia eram fascinados por ela”, recorda Cristina enquanto nos guia pelos cantos da escola onde o grupo costumava juntar-se ou pelo Garohotel, o café onde se encontravam depois das aulas ou nos períodos de recreios mais longos.
Paula Coelho acompanha agora a vida pública de Joacine, cerca de 20 anos depois de lhe ter dado aulas de Português. Recorda-a como uma aluna “despretensiosa, com facilidade de descodificação e sensibilidade artística, capaz de reconhecer na poesia o que está para lá do que é evidente”. A gaguez já lá estava, mas Cristina não se recorda de alguma vez Joacine ter deixado de fazer algo devido a essa particularidade. “Naquela altura, até ao 12º ano, o ensino não era muito expositivo. Sei, porque falámos sobre isso, que a Joacine só sentiu a gaguez como entrave para o sucesso quando chegou à faculdade.” Se o sentia, Fátima Sá nunca se deu conta. Nos frequentes debates que a professora de História Moderna e Contemporânea organizava nas suas aulas, Joacine “estava muitas vezes de dedo no ar, não deixava de fazer perguntas”.
Anabela Luís tem há 34 anos uma mercearia no Bairro do Bom Sucesso e ainda hoje se lembra de receber as visitas de Joacine. Para a deputada, esses momentos eram problemáticos. “Odiava que a minha madrasta me mandasse à loja. Logo eu, com estas dificuldades em falar, tinha de ir lá comprar ovos e farinha e dizer que pagava depois. Comecei a escrever uma lista num papel.”
É também nessa época que Joacine começa a trabalhar. Chegou a ir, com a madrasta, para a apanha de tomate. “Era um esforço físico monumental!” A seguir dedicou-se a fazer trabalhos de promoção nos supermercados, com algumas colegas do Secundário. “Enquanto nós íamos para lá para comprar roupa da Porfírios e botas Jimmy Dolye, a Joacine não queria saber dessas modinhas para nada”, lembra Cristina que recorda a amiga como muito seletiva nos namorados – mas quando os tinha “eram sempre muito giros”.
Quando entra na faculdade vai viver para a residência universitária do ISCTE e continua a trabalhar: faz promoção de produtos e aproveita os ensinamentos das Irmãs da Anunciata e vai arrumar quartos de hotel. “Ninguém percebia como era tão boa a fazer camas.” E a amiga Cristina afirma que Joacine há de cumprir o mandato. “Se alguém está à espera de que desista, bem podem esperar.”
Com Pedro Raínho
(Artigo publicado na VISÃO 1393, de 14 de novembro. Atualizado a 14 de dezembro)