Mais de metade (53,3%) dos oficiais dos três ramos das Forças Armadas consideram que deviam ter direito a um “número de horas semanal de referência” de trabalho e deveriam passar a ser pagos pelas horas extraordinárias que são chamados a cumprir em tempo de paz. E mais de 73% dos inquiridos pela Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) – num estudo inédito, cujos resultados são divulgados este sábado, em Lisboa – consideram “razoável” que os militares possam exercer uma profissão fora da instituição militar.
O inquérito contou com respostas de 1105 oficiais dos três ramos: Exército, Marinha e Força Aérea. Mas ainda antes de as conclusões serem divulgadas já estava a agitar as águas na instituição militar. A AOFA refere, na apresentação dos resultados, que o universo de participantes só não foi mais alargado porque “cerca de 4000 oficiais ficaram impedidos” de participar no estudo pelas chefias militares – incluindo pelo Estado-maior General das Forças Armadas (EMGFA) – que se opuseram a que o inquérito fosse distribuído em cada um dos ramos. “Em resposta aos ofícios enviados pela AOFA”, solicitando que o inquérito fosse divulgado internamente, “EMGFA e ramos pronunciaram-se de forma negativa, realidade que naturalmente nos abstemos de comentar publicamente mas que não podemos deixar de lamentar profundamente”, sublinha a associação.
Nas respostas a questões sobre as condições de trabalho e segurança, assistência social, associativismo ou até sobre a própria (má) imagem pública que pesa sobre a instituição e os militares que a representam, os oficiais dão sinais claros de discórdia, por exemplo, em relação à forma como são pagos pelas funções que desempenham.
Confrontados com uma pergunta sobre as condições remuneratórias da classe militar, 53,3% dos oficiais (ou 74,6%, se forem consideradas apenas as respostas dos oficiais no ativo) dizem “concordar” com a ideia de que, “sem prejuízo da disponibilidade permanente” para o serviço a que estão estatutariamente vinculados, os militares deviam “ter um número de horas semanal de referência”. Além disso, deviam ser “remunerados pelas horas extraordinárias” que têm de cumprir “fora desse período normal” de trabalho, ainda que não seja especificado um horário semanal. Ambas as questões são colocadas tendo em conta um cenário de paz.
Por outro lado, a percentagem de oficiais que discorda desta medida – ou seja, considera que as remunerações atribuídas são justas e dispensam um horário semanal de “referência” – é de 37,4%.
A AOFA faz a ressalva de que o que está em causa, neste ponto, não se confunde com o Suplemento da Condição Militar atribuído aos militares, e que pretende servir de compensação face à tal disponibilidade permanente para o serviço que têm de assegurar.
Salários baixos e olhos postos no privado
Ainda dentro do conjunto de questões colocadas aos oficiais sobre o Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), o inquérito pretendia saber a opinião sobre as restrições ao exercício de atividades remuneradas fora da instituição castrense. E uma esmagadora maioria defende um corte com a situação atual.
O EMFAR determina (art. 14º) que “as funções militares são, em regra, exercidas em regime de exclusividade”. E a questão que se colocava era a seguinte: “Considera razoável que um militar (sem prejuízo para o serviço e sem prejuízo da sua permanente disponibilidade) possa exercer outras funções, fora da instituição castrense?”
Aqui, 73,3% dos oficiais responderam que, “sim,” concordam com essa abertura ao setor privado para o exercício de funções. Mais uma vez, olhando apenas para os militares no ativo (e deixando de fora quem está na reserva de efetividade e fora da atividade, quem está na reforma ou foi abatido ao quadro permanente), percebe-se que o interesse é ainda mais significativo: 86,44% dos inquiridos respondeu positivamente a esta questão.
Como nota complementar, a AOFA refere ainda, a respeito de uma abertura ao exercício de atividades profissionais fora da instituição militar, que “a esta posição” não será alheio o facto de, noutras profissões, o ‘Regime de Exclusividade’ ter elevadas compensações financeiras, acrescendo o facto de os militares auferirem, já de si, muito reduzidas remunerações”.
Passagem à reserva e promoções: revolução em toda a linha
Ao longo do extenso inquérito (tem um total de 55 questões, divididas em oito grupos diferentes), os oficiais deixam outros três sinais claros de que apoiam uma mudança – nalguns casos, um regresso ao passado – nas regras de passagem à reserva, de promoções e de permanência no posto.
Sobre a passagem à reserva, 82% dos oficiais concordam com a ideia de essa transição se fazer quando um militar complete 40 anos de serviço militar ou (sublinhe-se o “ou”) 55 anos de idade. Pelas regras atuais, essa situação só é possível quando as duas condições sejam acumuladas: 40 anos de serviço e (sublinhando o “e”) 55 anos de idade. E acrescentam que, após cinco anos em situação de reserva fora da efetividade de serviço, os militares devem poder passar à reforma.
Neste caso, não se trataria de repor as condições anteriores, mas quase: na anterior versão do EMFAR, em vigor até à introdução das alterações de 2015, os militares podiam transitar para a reserva quando reunissem 36 anos de serviço ou 55 anos de idade. “O aumento para 40 anos de serviço militar e, sobretudo, a alteração do célebre “ou” para “e”veio agravar muito a situação dos militares”, nota a AOFA, ao mesmo tempo que defende que esta “é uma medida que importa urgentemente reverter e que ainda subsiste, entre muitas outras, dos tempos da troika”.
Outro ponto claro é o regresso da palavra às chefias militares no que toca às promoções. “A AOFA defende que as promoções devem ser realizadas como sempre foram até 2011, sem a necessidade de existência de qualquer despacho acessório” e “sendo integralmente controladas pelo ramo”. Confrontados com esta afirmação, 93,4% dos oficiais disseram “concordar” com o princípio. “Trata-se, garantidamente, da mais profunda injustiça, que ainda perdura dos tempos da troika e que duplamente penaliza financeiramente os militares, quer no momento em que são promovidos quer mais tarde, quando calculadas as suas pensões de reforma”, assinala a associação em nota de rodapé. “É emergente reverter esta medida, que já vigora há nove anos”.
O inquérito aos oficiais do Exército, da Marinha e da Força Aérea foi realizado entre 21 de outubro e 30 de novembro. Com dois objetivos: medir o pulso à recetividade dos oficiais (associados ou não da AOFA) face às propostas que a associação tem defendido nos últimos anos; e reunir material que permita “construir o ‘caderno reivindicativo da AOFA para a legislatura’” que acaba de arrancar. Cerca de 45% dos militares que participaram pertencem ao Exército, 30,5% à Marinha e 24,6% à Força Aérea. Há um equilíbrio entre os oficiais na reforma (492) e no ativo (472), tendo ainda participado militares na reserva fora da efetividade (76), na efetividade (47) e abatidos aos Quadros Permanentes (18). A esmagadora maioria (721) são oficiais superiores, tendo ainda colaborado 59 oficiais generais, tal como estão em clara maioria os homens (94,5%).