Tinham passado pouco mais de 12 horas depois de ser indigitado primeiro-ministro quando António Costa arrancou para um périplo pelas sedes dos partidos a que lançou o desafio para que procurassem pontos de entendimento. O objetivo é chegar a uma solução política que garanta a “estabilidade” no “horizonte da legislatura”, mas o quadro em que o líder socialista se move agora é, em pontos fundamentais, muito distinto do de 2015.
Com um PS vencedor das eleições, e sem a pressão de evitar que a direita assuma o Governo, Costa tem todos os cenários em aberto: repetir a solução de há quatro anos, alargar essa solução a novos parceiros, fechar um acordo com menos partidos ou seguir sozinho e enfrentar a legislatura com uma gestão “dia a dia” no Parlamento. Os encontros que António Costa já foi tendo ao longo do dia, e as posições assumidas pelos vários partidos no final dos encontros com o Presidente da República, esta terça-feira, vão dando algumas pistas sobre o possível resultado final.
Geringonça renovada
À partida, um acordo entre PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes é um cenário pouco provável de se concretizar. Logo na noite eleitoral, o secretário-geral dos comunistas disse “será em função das opções do PS, dos instrumentos orçamentais que apresentar e do conteúdo que legislar, que a CDU determinará o seu posicionamento”.
Cumprindo-se essa posição, isso significa uma pedra sobre a maioria parlamentar em vigor nos últimos anos. Mas há uma razão “pragmática” para que a posição do PCP tenha mudado face há quatro anos. Ao indigitar António Costa, dando-lhe luz verde para formar Governo, “o Presidente da República dá início à única solução política que existe”, e isso, diz João Oliveira à VISÃO, é uma “diferença abissal” face à situação que deu origem à “geringonça”.
Quanto ao outro parceiro do PS, o Bloco de Esquerda, há abertura para optar por qualquer uma das soluções: um acordo a quatro anos, como o de 2015, ou um acordo caso a caso, em função de cada diploma – ou seja, como o PCP admite fazer. Outra diferença face a 2015 é o facto de o partido de Catarina Martins, só por si, ser suficiente para garantir mais do que os 116 deputados que compõem a maioria dos lugares no Parlamento.
Geringonça 2.0
“Há condições para fazer um acordo com todos, excelente. Há condições para fazer um acordo só com parte, bom também. Até pode não haver condições para haver acordo”, enumerou António Costa à saída da audiência com Marcelo Rebelo de Sousa, na noite de terça-feira. A solução “excelente”, na expressão do líder socialista, é o cenário menos provável – até pelo que disse o presidente do Pessoas-Animais-Natureza depois do encontro com o primeiro-ministro indigitado. Sobram os outros dois cenários, ou seja, uma geringonça 2.0, certamente diferente daquela que foi criada em 2015.
Para já, André Silva vê margem para encontros “pontuais” de vontades. Na próxima semana, no novo encontro que já ficou agendado, logo se verá se é possível aprofundar esse entendimento. Mas é claro, neste momento, que há pelos menos um obstáculo gigante no caminho da convergência. Chama-se Aeroporto do Montijo. “Estamos bastante distantes” nesse ponto, assumiu Costa esta quarta-feira.
Depois, ainda há o Livre, a quem o PS estendeu o convite para dialogar com vista a um possível entendimento. Mas esta quarta-feira, depois do encontro com António Costa, a deputada única do novo partido com assento parlamentar, Joacine Katar Moreira, adiantou que a única disponibilidade que existe para fechar um acordo é se esse entendimento juntar todos os partidos convocados por António Costa. “Não estamos interessados em conversas bilaterais”, garantiu a deputada.
O Bloco de Esquerda foi o partido que mais abertamente se referiu à disponibilidade para voltar a pensar num acordo a quatro anos. Se esse é o modelo mais provável de ficar fechado – acordo PS-Bloco – só o diálogo dos próximos dias poderá determinar. Mas é certo que ambos os partidos terão de percorrer o caminho das pedras para lá chegar.
No domingo, na primeira reação aos reusltados das legislativas, António Costa lá foi dizendo que os outros partidos bem podiam ter o seu caderno de encargos, que o PS não sacrificaria o programa que levou a votos para garantir um acordo para a legislatura. Em cima da mesa, o Bloco de Esquerda colocou questões como a renacionalização dos CTT, alterações à legislação laboral – que o PS acabou de aprovar com o apoio da direita –, uma opção clara por um Serviço Nacional de Saúde totalmente público e um reforço do investimento público.
Até onde vai a exigência do Bloco e onde traça o PS a sua linha de cedência? Veremos. O diálogo ainda só está a começar.
Pós-geringonça (ou Governo à Guterres)
António Costa conhece bem esse cenário. O atual chefe do Governo foi ministro de Guterres quando, em 1995, o PS ficou aquém da maioria absoluta no Parlamento – sem que isso o tenha impedido de tomar posse e governar durante quatro anos.
Nada impede uma reedição desses anos. Fazendo as contas, rapidamente se percebe que PSD e CDS somam 82 votos no Parlamento. Se a esses dois partidos se juntarem os deputados de André Ventura (Chega) e da Iniciativa Liberal, isso representa um total de 84 eventuais votos contra orçamentos do PS. Ainda assim, muito longe dos (pelo menos) 106 deputados socialistas.
São cálculos naturalmente mais incertos que os de há quatro anos, mas permitem concluir que a mera abstenção de um ou mais partidos à esquerda do PS em questões fundamentais garante uma margem de conforto aos socialistas para governarem por si, sem precisar de acordos, escritos ou não, para o tal “horizonte da legislatura”.