Leio duas notícias logo ao acordar. A primeira é a de que os habitantes da cidade ucraniana de Mariupol, sitiada pelas tropas russas, já só têm alimentos para sobreviver durante três dias até que a fome se instale. A segunda, que o chef João Oliveira, de um conhecido restaurante em Portimão, é pessoa capaz de atravessar o país até ao Porto para uns suculentos filetes de polvo.
Este tão nítido contraste entre ambas as leituras recorda-me obviamente os privilégios de que desfruto, tantas vezes sem a consciência disso. Ainda ontem, aliás, ocorreu o último de uma série de quatro faustosos almoços com amigos que tinham apostado comigo o resultado das legislativas. Ou, para ser mais exacto, a vitória do PSD. Frente a um capitoso cozido de grão, enquanto em Mariupol se racionavam os enlatados, o Pedro falou-me das suas agruras ao tentar entender a realidade que nos cerca e como sente que a sua mente está igual ao browser de um computador com dezenas de janelas abertas, em número equivalente às preocupações que o assolam.
Numa tentativa frustrada de o distrair, falo da minha pedra do rim que se instalou aparentemente para ficar mas que os médicos asseguram virá a sair ou dissolver-se por si mesma. E dou por mim a forçar a metáfora, por comparação com a guerra na Ucrânia, recorrendo também aos mais digeridos conceitos taoistas; Os russos poderão instalar-se temporariamente no território mas, tal como a minha pedra, os acontecimentos se encarregarão de os expulsar ou dissolver, asseguro-lhe eu. Sem sucesso.
Na verdade, mesmo para este meu amigo que é uma excelente pessoa, diria até uma das melhores que conheço, neste momento, e a bem da verdade, a vida dos ucranianos só lhe ocupa uma das janelas abertas no browser das preocupações. As restantes são os problemas que já lhe entram pela porta adentro; o aumento dos preços da energia e alimentos e a certeza da inflação, a falta de matérias-primas e de bens, a retração do investimento e os efeitos na banca, em suma, o dinheiro que lhe vale cada vez menos ao fim do mês, a ele que tem mulher e filhos.
O cozido de grão chega ao fim e a conversa também esmorece. Recordo-lhe que o chef João Oliveira também aprecia muito uma versão do mesmo prato que se faz em Monchique. O Pedro olha-me como quem questiona a minha sanidade e diz-me que se está a borrifar para o chef João Oliveira e que de Monchique eu fazia bem era em beber a água e já agora um chá chamado “Quebra Pedra” ou então de pés de cereja. “Dizem que faz maravilhas”, assegura ele que nunca experimentou.
À saída, consulto no telefone a agência Reuters. As negociações entre a Rússia e Ucrânia mantêm-se num impasse, leio. Um pouco mais abaixo, outra notícia: Dois leões gémeos, evacuados de Kyiv, encontraram refúgio na Bélgica. Chamam-se Tsar e Jamil. Mostro a notícia ao Pedro e ele sorri ao ver a foto, enquanto saímos e comentamos a falta que nos faz a chuva.
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