Imaginem que faço uma permuta imobiliária: em troca da minha casa, ofereço o Terreiro do Paço. Estabeleço um acordo com a outra parte e troco uns sms sobre o assunto. Poderei ser denunciado pela Câmara de Lisboa por vender algo que não me pertence? Quanto muito, serei apontado por burla, em acusação particular, pelo meu interlocutor. Que, por sua vez, devia saber que eu não posso ceder-lhe o Terreiro do Paço, e por isso, nem devia queixar-se…
No máximo, terá sido isto que se passou entre Mário Centeno e António Domingues: o ministro pode ter prometido ao gestor que este ficaria isento de entregar a declaração de rendimentos e património – mas esse é um acordo inócuo, nulo do ponto de vista jurídico e político, a partir do momento em que existe uma lei (a de 1983) que o impede e que nenhum diploma do Governo revogou. Pedir a Centeno que se demita por causa destas “conversas” – que não podem ser consideradas um “acordo” – não faz sentido.
No entanto, por mentir ao Parlamento, já faz todo o sentido que se demita ou seja demitido. Imagine-se o que a esquerda não diria se esta situação se passasse durante o Governo do PSD/CDS! Mário Centeno, interrogado da primeira vez, devia ter logo dito:
“António Domingues colocou-me aquela condição. Tendo em conta a igualdade de mercado entre a CGD e o resto da banca, achei que a mudança de estatuto da administração, para a equiparar à concorrência, devia ser feita. Julgámos ambos, por erro de perceção, que o novo estatuto isentaria a admministração de entregar as declarações, visto estarem garantidas, até do ponto de vista do BCE, outras formas de escrutínio da sua idoneidade. Foi isto feito de boa fé. Mas eu não sou constitucionalista: se isto não isenta os administradores de apresentarem as declarações, paciência. Deixemos que o Tribunal Constitucional se pronuncie. É para isso que ele serve”.
E pronto: não mentiria nem se sentiria obrigado a respeitar um compromisso impossível. Como, em vez de ser claro, meteu os pés pelas mãos, omitiu, escondeu, distorceu e (se calhar) mentiu, neste momento, a sua posição, por muito que o Presidente da República considere o caso encerrado, pode vir a tornar-se insustentável.
Mas, diga-se de passagem, há outros aspetos que devem ser denunciados – e não deixam a culpa toda em Mário Centeno.
Primeiro, o chefe do Governo não pode deixar de estar a par de todo o processo. Mário Centeno, totalmente inexperiente no jogo da alta política, não faria nada disto sem perguntar. Aliás, se António Costa o tivesse deixado sem “aconselhamento” em todo este processo, daria uma prova de ligeireza e falta de coordenção política indesculpável.
Depois, se é verdade que o conselheiro de Estado António Lobo Xavier forneceu o conteúdo de sms trocados entre Centeno e Domingues, temos de perguntar como teve ele acesso a tais mensagens. Foram-lhe transmitidas por Domingues? Então porque as ocultou Domingues ao Parlamento? E que interesse tem Lobo Xavier em meter-se nisto?
Também é preciso saber se se podem firmar acordos por sms, Se é apenas isso que existe, como prova, para dizer que houve “acordo”, parece muito pouco. Um acordo tem de estar escrito e assinado por ambas as partes. A matéria é demasiadamente grave para se sustentar em conversas verbais ou mensagens com “imogis”. Deste ponto de vista, Mário Centeno pode sustentar até que a voz lhe doa: “Efetivamente, acordo, acordo, não houve”.
Finalmente, Marcelo Rebelo de Sousa: o Presidente diz que aceita a manutenção do ministro por razões de “estrito interesse nacional”, tendo em conta a “estabilidade financeira”.
Primeiro, não compete ao PR demitir ministros. Quando muito, pode exigir ao primeiro-ministro que o faça e este até pode recusar. Nessa altura, compete ao PR ponderar se se quebrou a confiança institucional e se está em causa o regular funcionamento das instituições. Se sim, deve optar por dissolver o Parlamento e o Governo cai.
Segundo, longe vá o agouro, mas se acontecesse alguma coisa a Mário Centeno? O País parava? O interesse nacional ficava em risco? A estabilidade financeira desaparecia? Mas alguém é insubstituível? Se o ministro cair, arranja-se outro, a governação depende de políticas e não de personalidades. Ou a “geringonça” está assim tão mal, que não encontra mais ninguém para executar o seu programa? O argumento de Marcelo é a lógica da batata. E, como diria um antigo comentador político, “não lembra ao careca”.
A verdade é que Mário Centeno foi salvo pelos números. Em termos técnicos, até ver, foi, no primeiro ano de Governo, um verdadeiro mago. O défice de 2,1%, de que ninguém fala, devido à montagem de todo este ruído, é um elefante que a oposição, a Comissão Europeia, o Conselho de Finanças Públicas, o FMI, a OCDE e o minsitro das Finanças alemão têm de engolir com muita Alka Seltzer. Pode dizer-se que o País cresceu menos duas décimas do que em 2015 (com o Governo de Passos Coelho) e muito menos do que a previsão inicial deste Executivo. Então, acompanhem-me neste raciocínio:
1. Em estudos anteriores à formação do Governo, Mário Centeno previa um crescimento de 2,4% em 2016. Mas isso foi antes da negociação dos acordos com os partidos à esquerda. O que foi firmado nesses documentos modificou o programa inicial e atrasou a recuperação. Foi o preço a pagar para viabilizar uma solução estável – e a política é a arte do possível. Por isso é que, no OE para 2016, foi inscrito o número de 1,8 por cento.
2. Mesmo em 2015, o crescimento já foi paulatinamente caindo, ao longo dos quatro trimestres. Não por qualquer razão de racionalidade ecnonómica, nem por incompetência do Governo de Passos, mas por um clima psicológico da política. Aproximavam-se eleições e a confiança caía, devido aos riscos de instabilidade. Com ela, caía o investimento.
3. O primeiro trimestre de 2016 é um período perdido. Não por culpa do novo Governo de Costa, mas das circunstâncias. O Orçamento só foi apresentado muito tardiamente, porque o Governo também foi formado tardiamente, e foi necessário negociar longamente com Bruxelas.
4. O segundo trimestre continua a ser mais ou menos perdido, não por ação ou inação do Governo, mas por falta de confiança dos agentes económicos. Era preciso avaliar a consistência da solução governativa. O próprio consumo das famílias se ressentiu dessa falta de confiança. E o Governo corrigiu a previsão para 1,2 por cento.
5. Quando se percebeu que o Governo estava para ficar, o crescimento disparou, e o desemprego começou a baixar. Nota-se isso no 3.º trimestre, mas pensou-se que era apenas efeito do Turismo. Mas o 4.º trimestre não é de época alta, e o crescimento reforçou-se. Entrava em cena o consumo (compra de automóveis, antecipando o anunciado aumento do IA em 2017, e o Natal) e um maior nível de investimento, bem como a recuperação das exportações. Estava definida uma tendência positiva.
Por todas estas razões, e porque as expectativas de todos os que não estavam comprometidos nesta solução política eram muito baixas, é extremamente injusto comparar 2015 com um ano absolutamente atípico como 2016. A verdade é que os resultados excederam as expetativas, com 1,4% de crescimento – a Comissão Europeia previa 0,9% – e um desempenho espetacular no último trimestre, de 1,9%, bem acima da média europeia. Já os juros da dívida têm aumentado, é verdade, mas sobretudo, porque a dívida continua descontrolada e por causa da situação do setor financeiro. Mas quem, em boa consciência, pode garantir que a dívida, num ano, teria sido substancialmente reduzida, ou que a situação da bancaq teria melhorado com outro governo qualquer?
Mário Centeno é, repito, salvo pelos números. Mas a falta de ética que, por ingenuidade política ou teimosia, revelou no processo da nomeação da administração da CGD não o salva do julgamento político que merece. A transparência não se vende por números, como parece insinuar o comunicado de Marcelo. Mesmo que estes sejam muito bons. Mas é preciso que todos sejam transparentes: Centeno, Costa, Domingues e Lobo Xavier.