1 A “vitória” portuguesa pela obtenção de um desconto de quase 50% no preço inicialmente pedido pelo medicamento da hepatite C terá sido um sucesso possível. Mas não é preciso ler romances de John Le Carré para saber que um grande laboratório tem muito mais poder negocial do que o pobre Ministério da Saúde português. Sabendo que os sistemas de saúde são geridos politicamente e que o processo de decisão dos governos decorre sobre brasas, pela pressão dos eleitores, estas empresas podem, eventualmente, fazer-se pagar muito para além do preço justo pela investigação científica que patrocinam. E é nestas alturas que nos lembramos: onde está a Europa quando precisamos dela? Uma central de compras da União Europeia, para este tipo de produtos, onde todos os países interessados se pudessem abastecer, não teria outro poder negocial? O volume da compra não faria baixar o montante, protegendo os Estados de preços especulativos e evitando que governos frágeis ficassem nas mãos das multinacionais? Mas não. A Europa só serve para nos chatear com as contas do défice…
Mais: mesmo não existindo uma central de compras europeia, porque não dialogam os governos entre si? Por que razão, sabendo do melhor preço conseguido pela França, não telefona o ministro da Saúde português ao seu homólogo francês pedindo-lhe que “nos dispense”, para as necessidades mais urgentes, digamos, os medicamentos necessários ao tratamento dos 150 doentes em estado crítico? Mas não: os ministros, entre si, só falam do défice.
Claro, não interessa. Uma musculação europeia, em negociações com os grandes laboratórios, iria fazer muita gente perder dinheiro.
2 De vez em quando, o Presidente Cavaco faz dos portugueses parvos. Desde a famosa queixa pela parca reforma que não ouvíamos nada assim: afinal, em julho de 2014, quando, pouco antes do aumento de capital do BES, se referiu à solidez da instituição bancária, estava, sim, a fazer uma declaração sobre… o Banco de Portugal! Veja-se o que Cavaco disse em julho de 2014, quando perguntado sobre os riscos relacionados com o BES: ?”O Banco de Portugal tem sido categórico a afirmar que os portugueses podem confiar no BES, dado que as folgas de capital são mais do que suficientes para cobrir a exposição que o banco tem na parte não financeira, mesmo na situação mais adversa.”. Ora, sabe-se agora, Cavaco tinha sido avisado, numa reunião privada, por Ricardo Salgado, sobre as dificuldades do BES. Podia, enfim, ficar calado. Foi como se um médico, perante um caso de hepatite C, dissesse ao doente: ?”O laboratório Gilead diz que um chá de cidreira cura isso rapidamente”, e, face ao óbito do paciente, viesse dizer que apenas fizera uma declaração sobre o laboratório Gilead. Ou uma mãe mandasse o filho à escola, em pleno janeiro, de manga curta e calções, dizendo-lhe que está um calor abrasador, e depois viesse dizer que apenas fizera uma declaração sobre o Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Não há duas interpretações: o sentido das palavras de Cavaco foi: “Se até o Banco de Portugal diz isto, claro que podem estar descansados!” Podia ter-se enganado, podia até ter sido induzido em erro pelo BdP. ?O problema é que teria outras informações, ?fornecidas pela principal fonte – o próprio banqueiro. E esta desculpa do ?Banco de Portugal só ?tem um nome: esperteza saloia.